Esta segunda-feira, o humor foi a tribunal, com Joana Marques no banco dos réus e Ricardo Araújo Pereira no das testemunhas. Na terceira sessão do mediático julgamento onde o humor está, literalmente, em julgamento, Ricardo Araújo Pereira (RAP) – humorista e colega de ofício da comediante e locutora da Renascença — prestou depoimento num ambiente que oscilava entre o absurdo e o solene, com o ex-Gato Fedorento a responder às questões da juíza e advogados durante mais de uma hora sob um calor abrasador.
Foi esse o testemunho que mais mobilizou gente até ao Palácio da Justiça, em Lisboa, onde tem decorrido o caso que opõe a dupla musical Anjos à humorista Joana Marques pela publicação de um vídeo satírico no Instagram. Os longos bancos de madeira não foram suficientes para a enchente de pessoas que se deslocou até ao sexto piso do Tribunal Cível de Lisboa, deixando uma dúzia de curiosos em pé.
A sessão começou com o depoimento de uma testemunha requerida por Sérgio e Nelson Rosado: o contabilista da banda de música pop, Nuno Miguel Santos. O também contabilista da empresa Angel Minds respondeu às questões da advogada da dupla sobre os valores de faturação nos últimos anos: em 2022, o ano do vídeo no centro da polémica, o grupo faturou cerca de 517 mil euros; em 2021, tinha faturado perto de 105 mil, e, em 2020, à volta de 89 mil euros; já em 2023, os Anjos faturaram cerca de 270 mil euros.
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Foi com muita dificuldade que se ouviu a testemunha e respetivas equipas jurídicas, entre o som continuado das ventoinhas, o abanar frequente dos leques, e os aviões a passar com regularidade. A juíza responsável chegou mesmo a advertir para que a testemunha falasse mais alto. Já o advogado de Joana Marques acabaria por questionar diretamente o contabilista: “O ano em que a ré terá provado os ilícitos é curiosamente o ano de maior faturação desta empresa (2022). Há alguma explicação contabilística para isso?”. Porém, Nuno Santos disse discordar “completamente”, apontando para os valores faturados pré-pandemia e notando como, em 2018, a banda terá faturado 280 mil euros e, em 2019, 402 mil euros. “Considera que em 2022, 2023, 2024, não fosse qualquer coisa ter acontecido, a faturação teria sido muito maior?”, perguntou de novo o advogado da humorista. “Sim”, contestou o profissional. A juíza, Francisca Preto, inquiriu o contabilista se “fez alguma projeção”, mas a resposta foi negativa.

Com Lisboa sob aviso vermelho — o mais elevado, por causa do calor, segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) —, nem as quatro ventoinhas no máximo eram suficientes para fazer face à alta temperatura (39ºC, registava o termómetro) que se fazia sentir na sala de audiências, desprovida de ar condicionado.
RAP: “Quando Alfredo Keil e Henrique Lopes de Mendonça fizeram o Hino Nacional em princípio não estavam a pensar em uou uou uou“
Ao final da manhã, quando Ricardo Araújo Pereira entrou na sala de audiências, de fato com camisa de manga comprida e blazer, o calor já antevia um interrogatório tropical. A advogada de Joana Marques começou por questionar: “Em termos genéricos o que está em causa?”.
“O que está em causa é que a Joana fez um vídeo de um minuto, pôs no Instagram, que exprime a seguinte ideia: eu não gostei muito desta atuação musical”, começou por dizer o autor do programa Isto é Gozar com Quem Trabalha, da SIC, onde trabalha com Joana Marques. “A gente vê o vídeo e percebe que se trata de um vídeo humorístico.” “A Joana sabe para que é que se fez o 25 de Abril”, continuou, lembrando a legenda do vídeo. “Aplicar esse raciocínio a uma coisa comezinha, uma atuação de dois cantores numa pista de motas, produz um efeito humorístico”, acrescentou.
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Recordando que “toda a sátira presta homenagem ao elemento visado”, Araújo Pereira considera que “o vídeo da Joana pressupõe a existência de um vídeo original”. “Quando Alfredo Keil e Henrique Lopes de Mendonça fizeram o Hino Nacional em princípio não estavam a pensar em uou uou uou. Não há mal nenhum nisso, é só porque faz contraste com aquilo que esperamos”.
O humorista lembrou que o trabalho humorístico se baseia também na ideia de metáfora. Interpelado pela equipa jurídica dos Anjos sobre a vertente opinativa do depoimento, a juíza rebateu: “Este julgamento convoca opiniões”. Voltando à ideia de metáfora, Ricardo Araújo Pereira recordou também que “assassinar uma canção é uma expressão bastante conhecida”. “Não significa que se está a pôr quem assassina uma canção no mesmo plano que a Rosa Grilo”, comparou, provocado alguns risos tímidos na audiência.
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A advogada de Joana Marques perguntou ainda ao ex-Gato Fedorento se já teve “tentativas de contacto por parte dos visados dos trabalhos que faz” e, em caso afirmativo, qual seria a reação do humorista perante uma situação idêntica. RAP garantiu que também não retiraria o vídeo. “O vídeo não comete nenhum ilícito. Retirá-lo seria uma assumpção de culpa que não existe”, reforçou, notando o “precedente” que abriria para casos futuros.

Advogada dos Anjos diz que RAP “fala como se os humoristas fossem um Deus todo poderoso”
Questionado pela advogada dos Anjos, Luciana Rosa de Oliveira, Ricardo Araújo Pereira foi convidado a recordar o encontro com o Papa Francisco, no Vaticano, em conjunto com outros humoristas, em 2024. Abaixo, a transcrição do diálogo entre ambos.
Advogada: Em algum momento Sua Santidade referiu limites para o humor?
RAP: Não.
A: De certeza?
RAP: O texto era uma reflexão sobre o humor.
Juíza: Já agora, era o Papa Francisco?
RAP: Sim, foi ainda o Papa Francisco.
A: Que reflexão foi essa?
RAP: Como deve imaginar, não sei de cor, mas tinha vários aspetos. Dizia que o humor não magoa, não humilha…
A: Eu vou lhe dizer concretamente: o humor não ofende e não humilha.
RAP: É isso.
A: Afinal o senhor Papa falou um bocadinho mais…
RAP: Não, desculpe, mas acho que está a interpretar mal as palavras do Papa.
A: Estou? Então diga lá.
RAP: Ele disse que o humor não humilha nem ofende. Como o humor não é sério, não tem potência.
A: Posso concluir pelas suas palavras que os humoristas são impunes. Se me chamar de um nome difamatório, está impune.
RAP: Também não é isso.
A: Explique lá então as diferenças. O senhor até tem feito uma campanha visual assertiva e diária. Tem feito uma campanha muito boa pela sua amiga. Gostava então que me explicasse porque fala como se os humoristas fossem um Deus todo poderoso. Diz que são declarações não sérias. Por isso pergunto-lhe se me chamar lá fora de cabra se não poderei fazer absolutamente nada.
Juíza: Temos uma lei, não vai incorrer a lei.
RAP: Toda a gente pode dizer tudo, aquilo que não se pode dizer está na lei, algumas são aquilo que referiu. Se eu baixar o vidro do carro e lhe chamar cabra, não é humor.
Juíza: Está a dizer que importa o contexto.
A advogada da banda continuou a insistir com Ricardo Araújo Pereira sobre a “responsabilidade” de Joana Marques no ciberbullying que os Anjos terão sofrido após a publicação do polémico vídeo. “Não vamos discutir aqui a responsabilidade porque o Ricardo não é jurista”, interrompeu a juíza. Minutos antes, também a advogada de Joana Marques, Elsa Seara, havia questionado o apresentador de Isto é Gozar com Quem Trabalha sobre o mesmo tema. “As consequências são incontroláveis para nós”, afirmou o humorista, notando as diferenças dos irmãos Rosado às reações online. “Se alguém os ameaça de morte, é indiferente. Se alguém se ri deles eles pedem um milhão de euros.”
A advogada dos irmãos Rosado evocou então um caso anterior, protagonizado por Ricardo Araújo Pereira, para ilustrar o impacto de uma exposição pública não autorizada. Referindo-se ao processo em que o humorista contestou a divulgação de imagens da sua casa, lembrou que “foi só um clique, foram segundos” — uma frase que, segundo a defesa, resume a rapidez com que a privacidade pode ser violada e a reputação afetada. “O tribunal decidiu a meu favor, parece-me que a privacidade é um direito…”, respondeu RAP. “As pessoas famosas tem direito à privacidade”, completou a juíza responsável.
Esgotadas as perguntas — com a juíza a pedir “questões novas” perante a repetição — Natália Luís, também advogada dos Anjos, rematou dirigindo-se ao humorista: “Tinha curiosidade se ia manter sempre a personagem, já percebi que sim”.

Fernando Alvim: “Este processo vem chamar a atenção para um momento que hoje em dia já ninguém se iria recordar”
Ao início da tarde, foi a vez de Fernando Alvim testemunhar, a pedido de Joana Marques. Certo é que o nome do animador da Antena 3 já fora invocado em sessões anteriores por parte da equipa jurídica dos Anjos, que fez notar como, graças ao vídeo satírico da atuação em Portimão, a dupla musical foi nomeada para os Monstros do Ano, uma cerimónia de prémios humorística criada e apresentada por Fernando Alvim há 17 anos e que tem como objetivo distinguir, de forma irónica e satírica, “os momentos mais insólitos, bizarros e comentados da sociedade portuguesa”, parodiando prémios convencionais como os Globos de Ouro.
Alvim sabia ao que ia, pois logo disse: “Estou aqui para falar dos Monstros do Ano, que organizo há 17 anos, e da sessão de 2022 para o qual os Anjos estavam nomeados”, começou por dizer ao tribunal. Alvim diz ter recebido “um telefonema por parte do Nelson em que ele pedia para retirar um vídeo que foi exibido na gala”, cuja cerimónia aconteceu a 19 de fevereiro de 2023 (com vídeos referentes ao ano de 2022).
O radialista notou como os irmãos Rosado, apesar de tudo, “não ganharam”, provocando alguns risos na audiência. “Quem ganhou foram as Senhoritas, com Sabão em Pó”.
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A advogada de Sérgio e Nelson Rosado questionou Fernando Alvim se, antes deste episódio, a dupla de cantores alguma vez tinha estado nomeada à gala Monstros do Ano, da qual já saíram vencedores nomes como Cristina Ferreira, Isaltino Morais ou Marcelo Rebelo de Sousa. O animador de rádio disse que, em 17 anos, não se recorda. A advogada e o radialista discordaram depois sobre se seria “bom” ou “mau” figurar na dita gala. “Ser comparado a uma Maria Leal não é o momento alto de uma banda”, atirou a advogada.
Perante o tribunal, Alvim justificou-se com a escolha do vídeo: “o fundamento [para usar o vídeo] foi haver comicidade. Para os Anjos possivelmente não haveria, mas para nós houve. Há dificuldade técnicas, houve um desajuste, e o resultado é aquele”. Sobre o vídeo, diz: “não manipulei absolutamente nada”.
A advogada da banda questionou o radialista se não foi o facto de o vídeo ter sido publicado por Joana Marques que o levou até à nomeação à cerimónia de prémios. Alvim rebateu: “Ele já ia muito bem lançado”, provocado gargalhadas na audiência. Retomando a palavra, esclareceu: “Eu já conhecia o vídeo antes de a Joana ter pegado nele”.
“Quero deixar claro que não via mal nenhum na exibição desse vídeo. Achei só que era um momento insólito”, disse Alvim, depois de admitir que acedeu ao pedido de Nelson Rosado para retirar o vídeo dos artistas a cantar o Hino Nacional dos materiais da cerimónia de prémios que organiza. “O Nelson pediu-me para retirar o vídeo, disse que não fazia sentido, que os prejudicava e na verdade eu já tinha feito a cerimónia principal, já pouco usava o vídeo, achei que não havia problema nenhum em retirá-lo dos outros vídeos”, disse perante a juíza. A advogada da ré questionou então: “Foi um pedido de um amigo ou uma interpelação?”. Alvim acabaria por responder: “Acho que se fosse uma interpelação teria agido de outro modo… Contou o Nelson ter ligado e termos ficado tanto tempo à conversa”.
Fernando Alvim insistiu: “A Joana Marques é humorista e aquilo que está ali a fazer é um exercício de humor”. “Honestamente quando vi eu achei graça, achei divertido, não imaginei que aquele post originasse todo este processo. Acho que todos nós podemos defender essa liberdade de expressão.” Sobre os Anjos, disse: “Acho que eles estão magoados. Acho que estão muito magoados.” E considerou: “Este processo vem chamar a atenção para um momento que hoje em dia já ninguém se iria recordar”
Houve ainda tempo para ouvir Miguel Isaac, agente de Joana Marques, que disse ter contactado Nelson Rosado, mas que o artista nunca lhe respondeu. Isaac garantiu que o vídeo da atuação dos Anjos utilizado nos espetáculos ao vivo da comediante não é o mesmo que foi publicado no Instagram da locutora da Renascença — contrariando a tese da defesa dos Anjos, que tem argumentado que Joana Marques, mesmo ciente das consequências do vídeo original, optou por continuar a exibi-lo perante o público.

Também o representante legal da empresa Senhores do Ar, António José Pereira Gomes, foi ouvido esta segunda-feira. A empresa fundada pelos irmãos para gerir a marcação e produção de concertos está também envolvida no processo e alega que sofreu prejuízos. “Tínhamos concertos em França e no Luxemburgo que acabaram por cair e ainda hoje pagamos a fatura por este assunto”, disse Pereira Gomes. “Tentámos produzir os espetáculos [cancelados], mas não correu bem.”
António José Pereira Gomes disse não ter dúvidas que foi por causa do vídeo publicado por Joana Marques que os Anjos viram uma série de espetáculos cancelados em 2022. Falou de concertos em Monte Gordo, Pedrógão e de um numa discoteca no Algarve — só este último deveria render à dupla de cantores 17.500 euros mais IVA. Questionado pela juíza sobre os prejuízos concretos para a empresa, António José Pereira Gomes disse que o “incidente foi pejorativo sobre a imagem” e “prejudicial na carreira”, tanto dos Anjos como da Senhores do Ar. Já questionado diretamente pela juíza sobre “quanto dinheiro deixou de ganhar”, o representante da Senhores do Ar disse: “Objetivamente não se faz contas”.
Advogada dos irmãos Rosado pediu que Joana Marques não fosse ouvida pela juíza, mas o pedido foi indeferido
Já perto do final da sessão, a defesa de Joana Marques fez um requerimento para que a humorista deponha em tribunal. No entanto, a equipa de advogadas de Sérgio e Nelson Rosado logo rebateu pedindo o indeferimento do requerimento — isto é, pedindo para que Joana Marques não prestasse declarações em tribunal.
Segundo a advogada dos Anjos, Luciana Rosa de Oliveira, “no primeiro dia a própria ré, em conferência de imprensa, dizia que pretendia prestar declarações”, mas optou por não o fazer, deixando-se ficar para ouvir tudo o que todas as testemunhas tinham a dizer e assim poder “moldar” o seu discurso. “Não se compreende”, disse a advogada da banda.
No entanto, no entender da juíza responsável, “o requerimento é oportuno”. “Não é intempestivo”, continuou. “Pode pedir as declarações até ao início das alegações finais. Pode escolher o momento em que pede para prestar essas declarações”, esclareceu. “Em segundo lugar”, disse ainda, “a declaração de parte, por definição, é parcial, se a lei permite as declarações de parte, permite que se dê ao tribunal a sua perspetiva”, rematou, indeferindo assim o pedido.
Assim, na próxima sessão, a 11 de julho, ficam agendadas as declarações de Joana Marques, mas também de Pedro Taborda, que dá pelo nome artístico Tatanka (do grupo The Black Mamba). O artista terá sido convocado pelos Anjos em sessões anteriores, mas não compareceu em tribunal.
Com Maria João Brás