Temos assistido nos últimos dias a um escalar no Médio Oriente devido ao ataque perpretrado pelos EUA a instalações nucleares iranianas que reacenderam a tensão geopolítica, criando um novo ponto de rutura com consequências globais. A resposta iraniana, com ameaças explícitas de encerrar o Estreito de Ormuz, deve ser analisada com o maior grau de seriedade, uma vez que representa uma potencial catástrofe económica e energética com especial impacto na Europa, e que não parece estar tão mediatizada como deveria pois, pode afetar o nosso quotidiano seriamente. O Estreito de Ormuz, que separa o Golfo Pérsico do Golfo de Omã, é uma das mais estratégicas rotas marítimas do planeta: cerca de 20% de todo o petróleo mundial, e grande parte do gás natural liquefeito exportado pelo Qatar, passa diariamente por esta estreita via. O seu encerramento, mesmo que temporário, implicaria uma rutura súbita nos mercados energéticos, uma escalada nos preços dos combustíveis e uma nova vaga de inflação com efeitos severos sobre o tecido produtivo europeu.
A Europa encontra-se numa situação de profunda vulnerabilidade estrutural. Após a pandemia, a guerra na Ucrânia e a crise energética posteriormente, os Estados-membros da União Europeia revelaram uma dependência excessiva de fontes externas de energia, bem como uma fragilidade industrial preocupante. A liberalização das últimas décadas, apesar de ter trazido crescimento económico, deixou a Europa exposta a decisões de regimes instáveis e de potências concorrenciais. A interrupção do trânsito no Estreito de Ormuz não seria apenas um problema logístico ou comercial — seria, no caso europeu, um choque económico sistémico. Como afirmava Hans Morgenthau, no seu realismo político, os Estados devem basear as suas decisões em interesses nacionais objetivos, e não em esperanças normativas. Ora, esperar que a estabilidade internacional se mantenha por inércia ou por via de acordos multilaterais — como sustentaria um liberal institucionalista como Keohane — é hoje, mais do que nunca, um erro estratégico.
A Europa deve preparar-se, com caráter de urgência, para uma rutura com os pressupostos em que assentou a sua prosperidade recente. A dependência energética externa é hoje o maior entrave à sua autonomia estratégica. Um bloqueio a este canal causaria uma escalada nos preços da energia( que já estamos a testemunhar), que por sua vez encareceria a produção industrial, agravaria a inflação e forçaria uma retração do consumo. Países como a Alemanha, cujo modelo económico assenta na exportação e na energia barata, entrariam rapidamente em recessão técnica. No Sul da Europa, onde a recuperação económica ainda não é estrutural, os efeitos seriam ainda mais graves: estagnação prolongada, quebra da competitividade e falência de setores-chave da economia.
Perante este cenário, é da minha convicção que a União Europeia deve adotar uma política temporariamente autárcica. Não defendo um encerramento absoluto ao comércio internacional, nem uma rejeição do mercado global, mas sim uma redefinição estratégica do seu modelo económico. A autarcia que defendo aqui é seletiva, racional e estratégica. Trata-se de desenvolver, com urgência, capacidades internas nas áreas da energia (com aposta decisiva nas renováveis, no nuclear civil e no hidrogénio verde), na produção industrial (relocalização de cadeias de valor), na autonomia alimentar e na soberania digital. Esta política não é ideológica, mas prática: visa preparar o continente para resistir a choques externos sem depender da imprevisibilidade dos mercados ou da benevolência de regimes autoritários.
A Europa precisa de um novo paradigma económico. Um modelo que valorize a resiliência acima da eficiência imediata, que invista na capacidade produtiva interna mesmo que a custos iniciais mais elevados, e que se prepare para um mundo multipolar, fragmentado e instável. Como nos lembra Hedley Bull, a ordem internacional é construída não apenas sobre regras, mas sobre capacidades. A Europa deve reconquistar as suas. O encerramento do Estreito caso se concretize, será apenas o sintoma mais visível de um problema mais profundo: a incapacidade da União Europeia em garantir a sua própria sobrevivência material num sistema internacional hostil.
Esta política autárcica, ainda que temporária, deverá ser coordenada a nível europeu, aproveitando o potencial do mercado interno e das sinergias regionais. A criação de reservas estratégicas, a constituição de fundos de emergência para setores críticos, a reforma da política energética comum e o reforço da cooperação industrial entre os Estados-membros são medidas urgentes. É também fundamental investir no desenvolvimento tecnológico autónomo, nomeadamente nos semicondutores, na inteligência artificial e na ciberdefesa — áreas que serão cada vez mais centrais no equilíbrio global de poder. Esta abordagem não significa o abandono dos valores europeus, mas sim a sua preservação. Liberdade, democracia e prosperidade não se mantêm com palavras: exigem alicerces materiais sólidos. E estes alicerces estão hoje ameaçados.
Neste sentido, a política autárcica temporária deve ser encarada como uma resposta estratégica, não como um regresso ideológico ao protecionismo do passado. Ela exige, contudo, uma reavaliação crítica do dogma da liberalização absoluta que dominou o pensamento económico europeu desde Maastricht. Não é apenas uma questão de produzir mais internamente, mas de reestruturar as prioridades do próprio projeto europeu, orientando-o para a resiliência, a redundância controlada e a defesa dos interesses vitais comuns. Num contexto em que a geopolítica regressa com força — como já tinha sido antecipado por exemplo, John Mearsheimer —, a dependência deixa de ser apenas um problema económico e torna-se uma questão de segurança existencial.
A Europa tem, paradoxalmente, capacidade para liderar esta transição. A sua base tecnológica, o capital humano qualificado e a relativa coesão institucional entre os Estados-membros podem ser transformados em vantagens estratégicas se forem mobilizados com um propósito claro. A criação de um “Plano de Reconstrução Estratégica” — inspirado nos mecanismos do Next Generation EU mas com enfoque produtivo, energético e tecnológico — seria uma via realista para financiar este novo paradigma. Mais ainda, é crucial fomentar uma cultura política que entenda a interdependência não como uma fragilidade, mas como algo que deve ser gerido com prudência e autonomia relativa.
Ao mesmo tempo, esta mudança exigirá também transformações profundas no modo como a Europa projeta o seu papel internacional. O encerramento do Estreito de Ormuz — ou mesmo a sua mera ameaça — lembra-nos que o controlo dos corredores energéticos continua a ser uma fonte primária de poder no sistema internacional. Neste quadro, a Europa não pode continuar a comportar-se como uma potência normativa sem força material para sustentar os seus valores. Como alertou Zbigniew Brzezinski, sem poder duro, os ideais tornam-se vulneráveis à chantagem das potências revisionistas.
A política externa europeia, frequentemente retórica, deverá ganhar musculatura geoeconómica e capacidade de dissuasão. Isso implica fortalecer a PESCO, repensar a dependência da NATO e investir autonomamente em segurança energética.
A crise do Estreito, portanto, não é apenas uma crise de fornecimento, mas o sintoma visível de um desequilíbrio mais profundo entre os objetivos estratégicos da Europa e os seus meios materiais. Continuar a adiar esta discussão em nome do conforto do status quo é irresponsável e, em última análise, perigoso. O continente deve, com sentido de urgência, assumir que o mundo não caminha para uma maior estabilidade, mas para uma fragmentação crescente, onde as alianças serão voláteis, os mercados instáveis e os recursos objeto de competição agressiva.
Importa, ainda, integrar nesta análise o impacto que este novo cenário poderá ter na ordem internacional liberal. Caso a Europa continue a depender energeticamente de zonas instáveis como o Médio Oriente, e tecnologicamente de blocos como a China ou os Estados Unidos, corre o risco de ser marginalizada nos processos decisórios do século XXI. A sua capacidade de influência em organizações multilaterais como a ONU, a OMC ou mesmo o FMI será progressivamente substituída pela de atores com maior capacidade de imposição estrutural. Como escreveu Susan Strange, quem controla as estruturas da produção, da segurança, do crédito e do conhecimento, controla o sistema. A Europa, neste momento, não lidera nenhuma dessas esferas de forma autónoma.
Por outro lado, esta situação também oferece uma oportunidade: a de refundar a ideia de Europa com base numa visão pragmática e solidária, em que os Estados-membros reconheçam que apenas uma resposta coordenada pode evitar a decadência coletiva. A autarcia estratégica não deve ser entendida como encerramento, mas como reequilíbrio. Um reequilíbrio que, se bem implementado, poderá gerar novas oportunidades económicas internas, criar empregos qualificados, reforçar a coesão social e promover a inovação.
É, pois, chegado o tempo de a Europa abandonar a sua confortável ilusão de estabilidade eterna. O Estreito de Ormuz pode parecer longínquo no mapa, mas o seu fecho simboliza algo muito mais próximo e inquietante: a erosão da autonomia material europeia, a fragilidade de um continente que trocou a produção pela especulação, a energia pelo endividamento, e a estratégia pela retórica. A ameaça que paira sobre aquela garganta marítima não é apenas um problema geopolítico alheio, mas o espelho de um continente que se habituou a depender — da energia dos outros, da tecnologia dos outros, da segurança dos outros, da coragem dos outros.
A União Europeia, se quiser continuar a ser mais do que um museu de democracias envelhecidas, deve abandonar a ingenuidade institucionalista que tantas vezes tem guiado as suas decisões. O tempo dos acordos voluntaristas terminou. O mundo caminha para uma nova era de escassez relativa, competição agressiva e disrupções constantes. A liberdade, a democracia e a prosperidade de que tanto nos orgulhamos — e com razão — não sobreviverão por inércia, nem por tratados, nem por boas intenções. Exigem bases materiais sólidas: produção própria, energia estável, capacidades industriais, coesão social e vontade política.
A autarcia estratégica que aqui defendo — temporária, racional, seletiva — não é um capricho de protecionismo ultrapassado, mas uma exigência de sobrevivência geopolítica. Não se trata de fechar portas ao mundo, mas de impedir que o mundo feche portas à Europa sempre que as marés mudem. É necessário recuperar o espírito de Schuman e de Monnet, não para repetir o passado, mas para reconstruir, com a mesma audácia visionária, um novo pacto europeu: desta vez, centrado não apenas na paz, mas na resiliência.
Porque, se o Estreito de Ormuz vier a fechar, se os petroleiros forem impedidos de atravessar aquele funil estratégico, se os preços dispararem, se a indústria estagnar e o inverno voltar a ser sinónimo de escassez energética, então perceberemos — tarde, talvez — que a verdadeira independência começa dentro de casa. E que a Europa, para continuar a ser Europa, terá de reaprender a produzir, a decidir, a liderar. Em suma, terá de reaprender a existir.
Se não for agora, quando? Se não for pela razão, será pela necessidade. E se não for por escolha, será por sobrevivência.