Vivemos numa era em que a mobilidade urbana parece mais moderna e acessível do que nunca. Com uma aplicação no telemóvel, chamamos um carro que nos leva, em minutos, ao destino desejado. Mas por trás dessa aparente comodidade esconde-se uma dura realidade, onde o sector TVDE (Transporte em Veículo Descaracterizado a partir de Plataforma Eletrónica) em Portugal funciona, muitas vezes, segundo a lei do mais forte — e os mais fortes não são, certamente, os motoristas.
Desde a liberalização deste sector, plataformas como Uber, Bolt ganharam terreno, muitas vezes sem o devido controlo. Impõem preços, condições e regras com uma mão invisível que não negoceia, apenas dita. Muitas pequenas e médias empresas e motoristas, que sustentam o sistema com o seu trabalho diário, veem-se reduzidos a peças descartáveis de uma máquina empresarial que prioriza os lucros sobre o bem-estar humano. Sem contratos estáveis, com rendimentos imprevisíveis e submetidos a avaliações constantes dos utilizadores e das próprias plataformas, muitos vivem sob uma pressão insustentável.
Por outro lado, o aparecimento de grandes operadores com centenas de veículos, designados de – grandes frotistas- alugam viaturas aos motoristas — muitas vezes verdadeiras “máfias de frotas” — aproveitam o vazio legal e a fraca fiscalização. Exploram motoristas com pagamentos à semana absolutamente execráveis, deduzindo ao valor apurado pelos motoristas sem qualquer enquadramento legal ou comissões abusivas e, em alguns casos, colocam três ou mais turnos num único carro para maximizar o lucro, sem pensar nas condições de segurança ou no desgaste físico dos motoristas.
É a selva. E na selva, quem não tem força, perde.
As plataformas alegam que oferecem “autonomia” e “flexibilidade” aos motoristas. Mas essa retórica só serve para mascarar um modelo de trabalho precário. O motorista paga combustível, e impostos. A plataforma e o dono das grandes frotas lucram — quase sempre — à sua custa. No final do mês, muitos motoristas ganham menos do que o salário mínimo, mesmo trabalhando 12 horas por dia, seis dias por semana.
A “lei do mais forte” também se manifesta no silêncio do Estado. A regulação existe, mas é frouxa e ineficaz. Associações e até sindicatos que tentam defender os motoristas enfrentam o poder económico e jurídico das plataformas multinacionais. A Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) intervém pouco. A Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT) assiste à degradação do sector sem força (ou vontade?) para intervir com firmeza.
Este ambiente de impunidade gera um ciclo vicioso: motoristas desesperados aceitam condições cada vez piores, alimentando o poder das plataformas e das “grandes empresas exploradoras”. Enquanto isso, o consumidor beneficia de viagens baratas, sem saber (ou querer saber) o custo humano que isso implica.
Tarda o momento de inverter esta lógica!. O sector TVDE precisa de um novo enquadramento legal que proteja os motoristas, imponha limites reais às plataformas e às grandes frotas que se aproveitam da fragilidade dos motoristas e garanta um equilíbrio justo entre tecnologia, mobilidade e direitos laborais. O progresso não pode acontecer à custa da dignidade humana.
Até lá, o sector TVDE continuará a funcionar como um faroeste digital, onde impera a lei do mais forte — e onde os fracos, pagam a conta.