“Toda a Ucrânia é nossa. Considero os russos e os ucranianos como apenas um povo.” A declaração, de meados deste mês no Fórum Económico de São Petersburgo, é do Presidente russo, Vladimir Putin, que quis deixar claras as intenções expansionistas em relação ao país vizinho. O chefe de Estado não descartava igualmente conquistar Sumy, uma cidade ucraniana perto da fronteira com a Rússia. Para concretizar estes desejos, as Forças Armadas russas elaboraram durante o inverno um ambicioso plano para uma nova ofensiva, que começou em meados de maio. Porém, os resultados têm sido pouco expressivos — e os ataques estão já a “estagnar”.
No território ucraniano, as tropas russas estão a atacar em vários pontos da linha da frente: a norte, em redor de Sumy, perto da fronteira, e em várias regiões do leste da Ucrânia, com foco em duas zonas: em Kostyantynivka, na província de Donetsk, e em Pokrovsk, na mesma região. Com combates em várias localidades, a Rússia pretende explorar a superioridade em termos de homens — e desgastar ainda mais os militares ucranianos.
Apesar de efetivamente haver muitos militares russos em território ucraniano, os militares leais ao Kremlin enfrentam várias dificuldades no terreno. E não só do ponto de vista operacional. Muitos homens não recebem o treino apropriado antes de irem para os diferentes teatros de operação e alguns têm mesmo problemas de alcoolismo e de uso de drogas, como relatam vários bloggers de guerra e o Washington Post. Existe também um clima de corrupção generalizada nas Forças Armadas russas, que prejudica a eficácia das tropas.

Nas redes sociais, nos bloggers militares russos que seguem a par e passo a guerra na Ucrânia, há várias críticas. Ao Washington Post, Ivan Philippov, que segue os influencers da área militar na Rússia, relata as queixas: “O principal problema de que se queixam é que não há homens. Eles dizem que as pessoas que querem combater e assinam contratos são cidadãos de segunda — pessoas com problemas de álcool, pessoas viciadas em drogas, pessoas com problemas de saúde, pessoas que estão acima da idade para combater. Nem todos são assim, mas são cada vez mais”.
Numa guerra que já dura há mais de três anos, os homens russos que estão disponíveis para ir para a linha da frente são cada vez menos; aqueles que decidem ir vão sobretudo por uma questão monetária — quem se voluntaria recebe automaticamente três milhões de rublos (cerca de 32.600 euros). Embora se assista a uma diminuição de voluntários, num país com 144 milhões de habitantes (contra 38 milhões de habitantes na Ucrânia), a vantagem russa continua a ser inequívoca. Para Sumy, a Rússia mobilizou 50 mil militares; segundo o Wall Street Journal, naquela região, há 3 soldados russos para apenas 1 ucraniano.
As falhas da Rússia em Sumy e o problema nas Forças Armadas
Mesmo com 50 mil homens em Sumy, Moscovo não conseguiu atingir os seus objetivos. O Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, escreveu esta segunda-feira no X “que o plano da ofensiva russa para a região de Sumy está a falhar”. O relatório deste domingo do think tank norte-americano Instituto para a Guerra confirma também que as “forças ucranianas têm feito” avanços, sendo mais difícil para a Rússia alcançar o objetivo de criar uma zona tampão dentro da Ucrânia, de modo a evitar ataques ao seu próprio território, tal como aconteceu na região russa de Kursk.
https://twitter.com/ZelenskyyUa/status/1939699062812680441
Na quinta-feira passada, o comandante-chefe das Forças Armadas da Ucrânia, Oleksandr Syrskyi, já tinha assinalado que o “avanço das tropas russas” em Sumy tinha sido “interrompido” desde o início desta semana. “A linha da frente está estabilizada”, assegurou a alta patente militar, explicando que “nas áreas em combate, as tropas [ucranianas] implementaram com sucesso táticas de defesa e libertaram territórios ucranianos na fronteira com a região de Sumy”.
A Rússia ainda conseguiu fazer ligeiros avanços em redor de Sumy no início de junho, controlando algumas aldeias na região. Contudo, o problema das tropas russas não é propriamente derrotar os militares ucranianos; tem mais a ver com a consolidação dos ganhos territoriais. Em declarações ao Washington Post, Dara Massicot, membro do think tank Carnegie Endowment for Peace, sinaliza que a Rússia “não é um rolo compressor a avançar”, mesmo que tenha a vantagem em termos de homens.
“Os russos têm essa vantagem, mas o ambiente operacional na linha da frente é muito complexo para os dois lados. Os russos ainda estão a tentar levar a cabo ataques suficientemente grandes para que possam progredir sem ser intercetados pela artilharia ou por drones ucranianos”, nota Dara Massicot, frisando também que as tropas de Moscovo sofrem várias baixas ao adotarem uma posição ofensiva no campo de batalha.
“Os números são um grande problema para nós”, admite ao Wall Street Journal, por sua vez, Kappa, um comandante da unidade ucraniana Chimera das Forças Especiais de Timur. “O inimigo perde 300 a 400 pessoas por dia em toda a região. Mas eles conseguem lidar com esse nível de baixas. Eles continuam a trazer as reservas”, constata. Mesmo assim, não foram ainda suficientes para avançar em Sumy.
Os progressos na linha da frente da Rússia são tímidos, mesmo em clara superioridade numérica. Ainda que em maio e junho de 2025 se tenha assistido a uma intensificação da ofensiva russa, os avanços não são significativos. O conflito continua numa fase de guerra de atrito, que parece não ter fim à vista.
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Para a Ucrânia, este tipo de guerra leva à exaustão da população, sentida particularmente pelos militares. Para a Rússia, é um conflito relativamente longe das principais cidades do país. Oferecendo salários mensais na ordem dos 204 mil rublos por mês (cerca de 2.600 euros) — num país em que o salário médio é de 50 mil rublos (cerca de 544 euros) —, Moscovo pode continuar a seduzir jovens soldados com a promessa de elevados pagamentos. O analista militar Ian Matveev refere ao Washington Post que muitos militares “sentem que ganham a lotaria”.

A propaganda russa — de que “tudo está bem na linha da frente” — acaba por convencer muitos soldados de que a situação não é assim tão má no terreno, sinaliza Ian Matveev. No entanto, assim que chegam ao teatro de operações, percebem que a situação é completamente diferente da que lhes foi inicialmente vendida. Muitos chegam sem o treino adequado. Com “táticas” arriscadas, as Forças Armadas Russas usam muitos soldados como carne para canhão, ignorando as baixas. “O que vemos é muitos soldados, mas não são treinados.”
Caso tenham meios financeiros para tal, os militares russos podem também subornar os seus superiores a não combaterem em certas operações. A corrupção é generalizada e dá azo a esse tipo de procedimentos à margem da lei. Além disso, alguns que chegam à linha da frente já têm problemas com o álcool ou com drogas; ou muitos desenvolvem o vício na batalha, de modo a escapar à realidade.
Um estimativa feita pelo jornal Vertska e partilhado pelo Ministério da Defesa do Reino Unido no X mostra que, em novembro de 2023, mais de 15% dos soldados russos na Ucrânia consumiam drogas — e que “era fácil” ter acesso a substâncias como canábis ou anfetaminas, mesmo na linha da frente. “Esses relatórios são credíveis e surgem na sequência de inúmeros casos, como incidentes disciplinares relacionados com o abuso de álcool por parte das tropas russas.”
https://twitter.com/DefenceHQ/status/1724042949502071121
A guerra no Donbass e a perceção de que a Rússia está na ofensiva
Se o sucesso militar é pouco em Sumy, noutras partes do território a Rússia também não tem feito grandes avanços. Mas as operações militares aparentam ser mais bem-sucedidas. No X, Volodymyr Zelensky expressou esta segunda-feira algumas preocupações em redor de Pokrovsk, na província de Donetsk. “Existe uma grande concentração de tropas russas naquela área, com ataques numerosos.”
Em junho, as tropas de Moscovo ocuparam 588 quilómetros quadrados do território ucraniano em junho, após 507 km2 em maio, 379 em abril e 240 em março. Os avanços concentraram-se, ainda assim, na região de Donetsk.
Esta segunda-feira, no que pode ser um golpe na moral das tropas ucranianas, o Ministério da Defesa da Rússia anunciou a tomada da cidade de Dachnoye, na província de Dnipro, que ainda não tinha sido atacada pelas tropas de Moscovo. A Ucrânia ainda não confirmou a conquista da localidade, mas a confirmar-se é uma prova de que a ofensiva russa ainda pode surpreender.
A Rússia tem estado focada na “fortaleza” da Ucrânia — que inclui várias cidades no Donbass, de que faz parte a província de Lugansk (que a Rússia diz controlar na totalidade) e Donetsk, que ainda está longe de ser totalmente conquistada (até ao momento, está cerca de 70%). Ao jornal Telegraph, Angelica Evans, membro do think tank Instituto para o Estudo da Guerra, considerou que os russos “não vão conseguir fazer avanços muito rápidos e consideráveis”.
https://twitter.com/TheStudyofWar/status/1939113186499686419
“Os russos não têm capacidades para começar algo novo e distinto neste momento. A ofensiva de verão vai ser uma continuação do que têm sido feito na primavera”, refere Angelica Evans, recordando que, desde janeiro de 2025, se tem verificado uma “intensificação dos ataques”. “Apenas piorou nos últimos seis meses. É um esforço para convencer as pessoas a deixarem essas cidades e tornar mais fácil conquistá-las.”
Ainda na madrugada do domingo passado, a Rússia levou a cabo o maior ataque aéreo desde o início da invasão. O país utilizou 477 drones e 60 mísseis, praticamente todos intercetados pelos sistemas de defesa aéreos ucranianos, e que tinham como alvo o complexo militar-industrial e refinarias da Ucrânia. E ao sucesso nos ares não corresponde o sucesso nos combates terrestres.
Ao Telegraph, um líder militar ucraniano que preferiu não identificar, vaticina que a “ofensiva russa praticamente estagnou”. “Têm vantagem a nível de homens e drones, mas a sua infantaria está muito mal treinada”, nota. Os avanços da Rússia até podem continuar nos próximos tempos, mas poucos analistas acreditam que irá além da conquista de algumas localidades.
Mais além da conquista de territórios, Vladimir Putin tem outra prioridade: que seja transmitida a perceção de que a Rússia está na ofensiva e a infligir pesadas derrotas à Ucrânia. Mesmo que até não seja completamente verdade e haja várias nuances, o Presidente russo precisa desse trunfo para, em caso de haver negociações de paz, afirmar a superioridade russa e obrigar a Ucrânia a ceder.
Vladimir Putin quer também impressionar Donald Trump, o homólogo norte-americano, sublinhando a ideia de que a Ucrânia “não tem cartas”, é uma causa perdida e nunca vai conseguir ganhar esta guerra. Os êxitos militares até podem ser poucos — e bastante celebrados na imprensa controlada pelo Kremlin —, mas a impressão global é o mais importante. E o Presidente russo não está disposto a avançar com a mobilização total de tropas, o que seria uma medida mal recebida no contexto interno.
Desde o início da invasão, as Forças Armadas da Rússia têm sofrido vários problemas. Longe de dominarem a Ucrânia em poucas semanas, as tropas russas têm cada vez mais dificuldades em obter êxitos militares no terreno, por causa do treino insuficiente, da corrupção e de vícios. Porém, a superioridade numérica mantém-se e continua a ser o principal trunfo de Moscovo — mesmo que militares sirvam de carne para canhão.