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MED. Muito para lá de resistir, este festival prospera

São mais de 20 anos com música de todo o mundo nas ruas de Loulé. Com um cartaz diverso e uma ampla programação, levou milhares de pessoas ao centro histórico. O que dá tanto sucesso ao MED?

Ricardo Farinha
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Numa era de evidentes dificuldades para os grandes festivais de música, um fenómeno que não é exclusivamente nacional mas que se tem vindo a revelar em Portugal — este ano não se realizam o Super Bock Super Rock e o Sudoeste, o MEO Kalorama teve uma adesão bastante abaixo do esperado, mencionando apenas alguns exemplos mais prementes — festivais mais pequenos como o MED, em Loulé, mantêm uma vitalidade impressionante.

O Observador esteve no evento dedicado às músicas do mundo que decorreu entre 25 e 29 de junho no centro histórico da cidade algarvia. Nos três dias de programação completa, houve cinco palcos principais com concertos intercalados, mais uma série de espaços performáticos complementares — com palcos específicos para o jazz, a música clássica, a programação infantil, o cinema ou a poesia.

Milhares de pessoas preencheram as praças, travessas e ruelas do centro histórico para assistirem aos concertos e conviverem entre si. O MED confunde-se com a própria vivência da cidade — existe um perímetro do centro histórico que fica vedado e reservado para o festival, mas a vida corriqueira daquela zona continua. Os cafés, bares e restaurantes mantêm-se abertos e a servir os clientes; há lojas que alargam os horários para poderem receber os visitantes; os residentes abrem as portas de casa para acolher outros ou ver concertos diretamente da varanda da sala ou da janela da cozinha. Os palcos são encaixados entre os edifícios e praças, adaptando-se à zona histórica sem a desvirtuar.

O espírito é de celebração e comunhão. Oferecem-se bebidas (num recinto onde se incluem casas e bancas com oferta variada, sem uma uniformização que por vezes pode ser castradora e pender demasiado para o objetivo do lucro), borrifam-se os outros com água para se passarem melhor as noites quentes, velhos e novos passeiam livremente, espreitando os palcos e as muitas bancas de artesanato que preenchem os corredores. Há uma notória componente comunitária, mas que não se encerra sobre si mesma: notam-se algarvios de outros concelhos, vizinhos espanhóis que vieram de propósito, turistas portugueses e estrangeiros que fazem as suas férias pelas redondezas e que decidiram ver os concertos do MED.

Com 21 anos de história, ao longo do tempo o festival foi ganhando espaço e programação, também alargando os seus horizontes. O MED do nome refere-se ao Mediterrâneo, já que o conceito original era o de um festival de músicas tradicionais centrado no sul da Europa e no norte de África. Mas, duas décadas volvidas, o mundo inteiro cabe no MED — já passaram pelo festival artistas de 78 países. A mais recente adição à lista, a única deste ano, foi o País de Gales, representado pela harpista Cerys Hafana.

Outra característica importante que distingue o Festival MED é que se trata de um evento sem quaisquer marcas associadas — não há patrocínios a dar nomes aos palcos nem ativações de marca pelo recinto — e que é inteiramente organizado pela Câmara Municipal de Loulé, numa lógica muito autossuficiente. Existem serviços técnicos específicos contratados, mas uma boa parte dos profissionais no terreno são os funcionários da autarquia — aliás, o programador do festival, Paulo Carvalho da Silva, é quem ao longo do ano está ao comando do Cine-Teatro Louletano. O diretor do festival, Carlos Carmo, é o vereador da Cultura da autarquia. Com exceção para o dia de abertura e o dia de encerramento, os três principais dias do festival contam com bilhetes pagos, ainda que por valores acessíveis: os ingressos diários custam 10€, os passes gerais ficam por 30€ e é possível comprar um bilhete de família por 35€.

Nem todas as câmaras municipais terão as condições para concretizar um festival desta dimensão e relevância com estas características. Afinal, Loulé está entre as 20 autarquias portuguesas com maior orçamento para 2025, o que demonstra o poderio financeiro do concelho — que se estende da serra algarvia até ao litoral de Quarteira, passando por Almancil ou Boliqueime, com enormes empreendimentos turísticos em Vilamoura e Quinta do Lago pelo meio. E também seria certamente diferente para uma estrutura privada, que procura o lucro ou pelo menos ficar sem prejuízo, organizar um evento desta natureza numa altura em que os custos de produção aumentaram de forma generalizada.

As naturais resistências que se poderiam esperar face a um festival de músicas do mundo, com artistas e sonoridades que podem parecer estranhas a muitos, foram-se desvanecendo à medida que o Festival MED foi ganhando raízes e fortalecendo os laços com a comunidade.

Mas a música em Loulé não se fica de todo por aqui, o MED não é aposta única. De dois em dois anos, organizam a já célebre Noite Branca, com nomes populares da música portuguesa e DJs que tocam pela noite fora. No outro espetro artístico, promovem o Som Riscado, um festival que cruza música experimental, imagem e criatividade. Todos os anos organizam ainda o Festival de Jazz de Loulé, o mais antigo do país com atividade ininterrupta, cujo diretor é Mário Laginha, com raízes no concelho. Durante alguns anos, em parceria com o artista local Dino D’Santiago, promoveram o festival Sou Quarteira, mais dedicado à música urbana, afrodescendente e ao hip hop, com destaque para os músicos da freguesia — um importante polo do rap em Portugal, historicamente o maior reduto do movimento a sul do país.

As naturais resistências que se poderiam esperar face a um festival de músicas do mundo, com artistas e sonoridades que podem parecer estranhas a muitos, foram-se desvanecendo à medida que o Festival MED foi ganhando raízes e fortalecendo os laços com a comunidade. A pré-disposição para ouvir música diferente é notória quando se passeia pelas ruelas do centro histórico de Loulé — há roupas, sotaques, aparências, instrumentos ou sons que podem causar espanto; mas, depois de se estranhar, facilmente se entranha mais e mais. As pessoas não conhecem grande parte das bandas, mas não é por isso que deixam de marcar presença e de lotar os diferentes palcos.

[A polícia é chamada a uma casa após uma queixa por ruído. Quando chegam, os agentes encontram uma festa de aniversário de arromba. Mas o aniversariante, José Valbom, desapareceu. “O Zé faz 25” é o primeiro podcast de ficção do Observador, co-produzido pela Coyote Vadio e com as vozes de Tiago Teotónio Pereira, Sara Matos, Madalena Almeida, Cristovão Campos, Vicente Wallenstein, Beatriz Godinho, José Raposo e Carla Maciel. Pode ouvir o 7.º episódio no site do Observador, na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E o primeiro episódio aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui, o quarto aqui, o quinto aqui e o sexto aqui]

Uma programação dedicada a Cabo Verde e aos seus 50 anos de independência

Apesar dos seus 21 anos de história, o Festival MED só instituiu em 2024 a lógica de contar com um país convidado. A ideia é que, a cada ano, haja um foco especial na cultura de um determinado país, que se reflita em toda a programação. A Câmara Municipal de Loulé decidiu começar com Marrocos — os vizinhos a poucas centenas de quilómetros, com quem Portugal partilha uma história e herança cultural, sobretudo nas regiões mais a sul — e este ano o país escolhido foi Cabo Verde. Os 50 anos da independência do país, que se comemoram já no próximo dia 5 de julho, foram uma coincidência feliz. Na verdade, a organização do MED queria sobretudo reforçar os laços e homenagear a cultura de um povo com uma expressão significativa no concelho — e em todo o território nacional.

Por isso mesmo, a cultura cabo-verdiana foi o foco de uma boa parte da programação do MED de 2025. Serviu-se cachupa e fizeram-se demonstrações musicais e coreográficas num espaço designado como Pátio de Cabo Verde, contaram-se histórias e declamou-se poesia em crioulo, organizaram-se jogos tradicionais daquele país para as crianças, expuseram-se obras de artistas visuais da diáspora, exibiram-se filmes realizados por cineastas cabo-verdianos e, claro, foram vários os músicos que foram subindo aos palcos ao longo dos dias de festival.

A performance mais importante nesse sentido — e que talvez tenha sido decisiva para esgotar o dia 28 de junho, sábado, em que o recinto atingiu a lotação máxima de 15 mil pessoas — terá sido o concerto inédito de Dino D’Santiago e Os Tubarões. O músico de Quarteira, artista local que tem sido frequente no MED ao longo dos anos, estava duplamente a jogar em casa ao também representar Cabo Verde nesta edição. Aliou-se pela primeira vez em palco a uma das bandas mais históricas do país ainda no ativo, Os Tubarões — cuja música os seus pais “traziam na maleta quando emigraram para Portugal”, como contou em palco — para um espetáculo especial que serviu como um ponto de partida. Já está confirmado que Dino D’Santiago se voltará a juntar a Os Tubarões noutros palcos, nomeadamente o Azores Burning Summer, onde o concerto já foi anunciado para a edição que decorre no final de agosto na ilha de São Miguel.

Com uma história que remonta à década de 60, a formação d’Os Tubarões sofreu várias alterações ao longo dos anos. Aliás, a atividade da banda esteve mesmo interrompida entre 1994 e 2015, altura em que o grupo foi ressuscitado, já sem o emblemático vocalista Ildo Lobo, que entretanto morreu. Conhecidos pelas suas coladeiras e funanás, ou pelas mornas mais eletrificadas, a música de Os Tubarões foi especialmente marcante nos anos 70 e 80, no pós-independência, com canções politizadas que se tornaram autênticos hinos cabo-verdianos.

Foi essa celebração que trouxeram ao MED, com Dino D’Santiago a usar os seus dotes vocais, o seu carisma e experiência de palco para se enturmar na histórica formação — todas as canções interpretadas foram as d’Os Tubarões, desde o clássico Djonsinho Cabral ao hino independentista Labanta Braço, passando pela incontornável Tunuca. Diante do palco, uma comunidade cabo-verdiana local em massa, de bandeiras e lenços patrióticos em riste, celebrando a sua cultura e expressando sodades pela terra mãe.

O mesmo cenário repetiu-se por diversas vezes neste Festival MED. O evento recebera antes uma sentida homenagem à referência maior da música cabo-verdiana, Cesária Évora — que imortalizou a morna e levou a cultura do seu país a um estrelato internacional sem precedentes —, com o concerto de uma Orchestra formada por diferentes instrumentistas, alguns dos quais haviam tocado com a “diva dos pés descalços”, e pelos vocalistas Elida Almeida, Ceuzany, Lucibela e Teófilo Chantre. O cancioneiro popularizado por Cesária Évora foi entoado e celebrado ao vivo, numa atuação que teve como momentos altos as interpretações de Petit Pays e, claro, da eterna Sodade, cantada em plenos pulmões pela multidão, tenha ou não origem naquele arquipélago.

O concerto de encerramento teve uma importância simbólica de várias dimensões. Foi uma homenagem a Sara Tavares, artista de ascendência cabo-verdiana com ligações ao concelho de Loulé — onde a sua mãe continua a viver —, idealizada por Nuno Guerreiro, vocalista da Ala dos Namorados, amigo de Sara e cantor local, que morreu em abril, período em que decorria a preparação do espetáculo.

Pelo MED haviam também passado os Ferro Gaita, banda histórica que foi determinante para revitalizar o funaná nos anos 90 e para recuperar as raízes — lá está — do ferro e gaita, numa altura em que o género tradicional havia sido capturado pelos instrumentos elétricos contemporâneos. Um autêntico furacão de rebuliço e festa, o grupo encabeçado por Iduíno e Bino Branco agitou Loulé com o seu frenesim musical a que é muito difícil ficar indiferente. A música cabo-verdiana tem uma componente social muito forte — tal é a sua presença no dia a dia do país e das suas comunidades — mas ainda mais enquanto elemento agregador da diáspora, já que a maioria da população de Cabo Verde vive no estrangeiro, acabando por se tornar numa nação transnacional, um espaço simbólico que ultrapassa quaisquer fronteiras, mas que é palpável e bem real.

Já o concerto de encerramento teve uma importância simbólica de várias dimensões. Foi uma homenagem a Sara Tavares, artista de ascendência cabo-verdiana com ligações ao concelho de Loulé — onde a sua mãe continua a viver —, idealizada por Nuno Guerreiro, vocalista da Ala dos Namorados, amigo de Sara e cantor local, que morreu em abril, período em que decorria a preparação do espetáculo. Os Shout, os Mau Feitio, Nancy Vieira e a irmã de Dino D’Santiago, Lígia Pereira, juntaram-se em palco para prestar tributo à mulher que fez da sua carapinha uma coroa de rainha, num espetáculo que ganhou um cunho particularmente comovente pela presença da sua família mas também pela morte recente de Nuno Guerreiro.

Do fado à Jamaica, passando pelo deserto marroquino e pela festa colombiana: o MED traz o mundo a Loulé

O Festival MED, porém, foi a muitas outras latitudes — começando por Portugal. A garota não apresentou o seu novo álbum, Ferry Gold, perante uma multidão que, a dado momento do concerto, entoou com vigor o cântico “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!”, após Cátia Oliveira ter ironizado: “Eles falham há 50 anos, eles roubam há 50 anos, deem-me uma oportunidade… de roubar também”. Sóbria e contida, tímida mas assertiva, foi dando vida aos poemas e textos terceiros que a levaram a construir este disco — que a própria escrutinou com detalhe numa entrevista concedida ao Observador. Mas os principais êxitos de 2 de Abril, o disco editado em 2022 que definitivamente a catapultou, como Dilúvio e Prédio Mais Alto, não falharam o alinhamento.

Noutro dia e palco, Carminho não foi tão agraciada quando uma boa parte dos presentes não se lembrou da máxima “silêncio que se vai cantar o fado”. A sua música íntima e poderosa, muito assente na voz extraordinária e nas cordas dos instrumentistas, não foi tratada da melhor forma num palco com muito burburinho de fundo, entre conversas paralelas e brindes intermináveis. Mas a fadista não se rendeu, mantendo de forma irredutível a sua arte, enquanto ia contextualizando os temas interpretou de Portuguesa, o disco de 2023 que tem vindo a apresentar, onde poemas clássicos e composições contemporâneas se sentam à mesma mesa. Na primeira metade do recinto, o público mais atento e devoto seguia com carinho os rituais fadísticos, o que acabou por proporcionar o melhor final ao espetáculo, que fez Carminho até regressar para um encore e pegar na guitarra elétrica para uma derradeira canção.

Em Loulé continuámos a viajar pelo mundo. Outra das celebrações foi a da música reggae da Jamaica, com a digressão especial que junta duas bandas históricas do género, The Congos e The Gladiators, naturalmente já com formações bastante distintas face aos anos 60 e 70. O pulsar rítmico tranquilo, as percussões de inspiração africana, o carismático sotaque jamaicano e a influente cultura rastafari a merecerem um palco grande no Algarve, perante uma das maiores multidões de toda esta edição.

Os colombianos Systema Solar, também bastante influenciados pela cultura dos soundsystem e dos DJs das Caraíbas, puseram a sua festa em marcha com uma performance enérgica e cativante. Já os congoleses Fulu Miziki embarcaram o público numa viagem afrofuturista de nuances punk onde a missão principal foi, além de agitar os corpos, provocar um mundo e um futuro mais sustentável — com instrumentos e figurinos construídos pelos próprios a partir de materiais reciclados, uma linha que percorre toda a filosofia ideológica do grupo.

Conseguimos ainda assistir ao concerto de Paulo Flores, angolano que é símbolo do semba, embora não se restrinja a um só género. Acompanhado por uma talentosa banda, foi entoando alguns dos seus temas mais icónicos mas também as composições do novo disco, Canções Que Fiz Pra Quem Me Ama.

Apesar de já não ter sido o país convidado desta edição, Marrocos voltou a marcar presença no MED com o concerto dos Tarwa-N-Tiniri. Música do deserto feita pelo povo Amazigh, com uma roupagem mais elétrica e global, uma espécie de rock ou blues do Magrebe. Vestidos a rigor, com os trajes tradicionais e os lenços que no quotidiano os protegem dos solos arenosos e das temperaturas intensas, protagonizaram uma das maiores festas de todo o festival, puxando pela vasta multidão que se reuniu às portas do Castelo de Loulé.

É essa a maior riqueza do MED, a maneira como se encara a diversidade e as diferentes culturas e tradições enquanto patrimónios vivos; a forma como se estimula o interesse e a descoberta do outro; o potenciar da comunidade no espaço público; como se organiza um evento de sucesso escapando às lógicas mais consumistas e à pressão das marcas multinacionais. Talvez se encontrem em festivais como este algumas das respostas que muitos dos grandes festivais de música procuram para responder aos desafios e dificuldades que atravessam.