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(A) :: Alguma vez alguém vai compreender Andy Kaufman?

Alguma vez alguém vai compreender Andy Kaufman?

A canção "Man on the Moon" e o filme com o mesmo título muitos conhecem. Mas o humorista que influenciou muitos outros nem sempre é reconhecido. Um novo documentário revela mais sobre este enigma.

João Bonifácio
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Quando eu era miúdo, uma das formas que os adultos tinham de nos entreter, nesses dias pré-internet, pré-telemóvel, pré-pc, quando tudo as nossas brincadeiras consistiam em trepar árvores para roubar frutos, jogar à bola ou perseguir sardaniscas, uma das formas (dizia) que os adultos tinham de nos entreter era contar piadas ou adivinhas – quase sempre piadas um pouco picantes para a nossa idade.

Um dos ditos deve ter-me sido repetido centenas de vezes e consistia simplesmente da pergunta “Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”, que nos deixa como que paralisados, porque sabíamos que cada adivinha que os adultos nos propunham consistia de uma trapaça e o fim da trapaça era sublinhar a nossa ignorância.

Confesso aqui a minha preguiça: nunca me dei ao trabalho de saber quem nasceu primeiro. Mas desses dias ficou-me o apreço por aquelas personagens que têm sempre uma piada a escapar-se pelo canto da boca, pelos contadores de histórias, pelos tipos (nessa altura eram sobretudo homens) que tinham o dom de, ao falar, porem um café inteiro parado a ouvi-los quando sacavam de uma história engraçada ou de uma piada.

[o trailer do documentário sobre Andy Kaufman, disponível na Filmin:]

https://www.youtube.com/watch?v=PD2aZIOwylo

Na América, onde tudo se monetiza, uma variação desta figura assumiu os contornos de stand-up comedian: alguém que sobe a um palco e conta piadas, não obrigatoriamente anedotas populares, mas material que criou. E pelo menos uma coisa eu sei que surgiu antes na minha vida: antes de eu saber quem foi Andy Kaufman, através de Man on the Moon (o excelente biopic de 1999, realizado por Milos Forman), eu já sabia que Andy Kaufman existia, quando li (numa qualquer publicação estrangeira) que Man on the Moon, essa espantosa canção dos R.E.M., tinha como assunto o dito Kaufman. No meu caso, portanto, primeiro veio a canção, depois o filme e finalmente o comediante. Mas, e atalhando caminho, continuei sem saber quem era Andy Kaufman até ver o recém-estreado A Comédia e o Caos: o legado de Andy Kaufman, disponível desde há uns dias na plataforma Filmin – um documentário que procura responder à pergunta que o mundo da comédia faz há anos: “Quem foi Andy Kaufman?”, ou, mais especificamente, “Porque é que Andy Kaufman era assim?”. Nunca há respostas completas, mas o doc pelo menos chega às raízes.

Se vos ocorrer como é que podem ter decorrido tantos anos sem eu realmente saber quem era Andy Kaufman desde a primeira vez que li que era sobre ele que Man on the Moon versava, a minha única defesa é que era extremamente difícil conseguir material de Kaufman; à medida que a minha obsessão com comediantes aumentou, consegui botar as mãos em livros e cassetes com stand-ups de Woody Allen, ou antigas VHS com specials de George Carlin, mas de Kaufman nada.

Sabia algumas coisas, pelo menos de ver e ler sobre Man on the Moon (o filme): que Kaufman, mais do que fazer stand-up, como que sabotava os seus stand-ups, criando nas pessoas uma espécie de desconforto existencial – as pessoas iam a clubes para ver alguém introduzir a piada, preparar a piada, entregar a punchline e depois passar para a próxima piada, e aqui estava um tipo que chorava durante o ato, pedia desculpa por ser uma merda, ou então era atacado por um membro do público.

Nascido em Great Neck, logo em miúdo Kaufman começou a entreter festas de criança. Quando tinha 16 ou 17 anos fugiu de casa e dormiu debaixo de um banco de um jardim. É ele próprio que diz que nesse período bebia e tomava drogas. Adorava o livro "Pela Estrada Fora", de Jack Kerouac e pediu ao pai para ler – o pai aquiesceu e acabaram a ler e a chorar juntos.

Alguém que criou múltiplas personagens, algumas das quais com direito a ir a talk-shows, personagens sobre as quais as pessoas não sabiam o que pensar, embora aqui e ali desconfiassem que era Andy Kaufman. Alguém que criou um concurso à escala nacional, desafiando mulheres a lutar com ele, usando para tal os termos mais misóginos possíveis, propositadamente para ofender, para ver até onde conseguia levar a tanga, alguém que (desconfio) tinha tanto medo da rejeição que passou a criar personagens que sabia que iam ser rejeitadas, até que muito possivelmente se tornou ele mesmo uma personagem de si próprio, ao ponto de nem os amigos saberem bem o que esperar.

Registemos isto: quando Kaufman morreu, como o documentário demonstra, bem novo, aos 35 anos, alguns amigos não foram ao funeral, pensando tratar-se de nova peta – estavam cansados das petas de Andy, de serem enganados por ele. Quando ele morreu, ninguém acreditou que ele tivesse morrido e de quando em quando aparecia uma foto, um vídeo cheio de grão, como suposta prova de que ele estava vivo.

O documentário abre com imagens de Kaufman num clube (The Improvisation): não está propriamente a contar uma piada, parece aterrado de estar em palco e fala com uma voz esquisitíssima (que não é a dele) e toda a gente detesta o que está a ver. Depois imita o Elvis na perfeição (as pessoas adoram) e depois volta à voz esquisita. Neste pequeno momento está a súmula do que viria a ser uma carreira: alguém que sabe quais as regras (da stand-up comedy, do estrelato televisivo) e que decide subvertê-las de forma compulsiva.

Bob Zmuda, que foi argumentista de Andy, intervém para dizer que a ideia por trás da persona de stand-up de Kaufman era criar alguém cujo “ato artístico [fosse] um embaraço: a premissa era de que aquele gajo não devia estar ali”. E vemos imagens de Kaufman em palco a chorar e a mandar vir com uma audiência, a dizer que só queria divertir-se e não tem talento – e depois de dizer isto desata a batucar, como se nada fosse.

Bob diz: “Queríamos que o público se perguntasse se isto foi real”. Andy Kaufman, no que talvez seja a sua única afirmação verdadeira, em imagens de arquivo, surge a afirmar que nunca contou uma piada na vida. Exemplificando, um dia foi dar um espectáculo e logo de início colocou uma qualquer condição absurda: se isto acontece, eu leio o Great Gatsby inteiro. O documentário oferece-nos imagens dele a ler o Great Gatsby completo – e ele leu mesmo o Great Gatsby inteiro dessa vez. Comentário de Bob: “É uma forma de tortura”.

Em jeito de sinopse, e porque navegar por entre todas as iterações da vida e carreira de Kaufman é mais complicado do que tentar mudar de operadora de telecomunicações, permitam-me uma sinopse que surge estendida e não obrigatoriamente por esta ordem no documentário: depois de uns curtos anos a atuar nos clubes de comédia de Nova Iorque, Kaufman começou a ficar conhecido quando, em 1975, Dick Ebersol o convidou a atuar no então nascente Saturday Night Live (do qual mais tarde seria expulso). Uma das suas personagens (o Foreign Man, alguém que falava com sotaque estrangeiro, de forma quase racista) foi adaptada para a personagem de Latka Gravas, da série de comédia Taxi – a personagem foi desempenhada pelo próprio Kaufman, tornando-o numa estrela, pelo menos enquanto a série durou (de 1978 até 1983) . Já agora, ele morreu em 1984.

A maior parte dos artistas, tendo atingido o estrelato, mais ainda com uma personagem muito acarinhada pelo público (Latka era inofensivo e ingénuo, o que provocava o carinho da audiência), tende a entrar numa espécie de modo defensivo: manter o tipo de papel que concedeu o estrelato, não dizer nada que aliene a audiência, capitalizar o mais possível no sucesso.

Mas tudo o que enumerei parágrafos acima continuou a repetir-se: as suas aparições em clubes de stand-up adquiriram cada vez mais contornos de performance art, e a dada altura ele criou uma personagem verdadeiramente ofensiva, Tony Clifton, supostamente um crooner mas na realidade uma desculpa para esticar a corda do que o público (que não sabia que Clifton era Kaufman) conseguia aguentar.

O homem que ficou traumatizado em criança com a mentira dos pais passou o resto da vida a mentir, chegou ao cúmulo de criar personagens para poder mentir de forma mais convicta. E depois, quando teve cancro, os amigos não acreditaram. Mesmo quando morreu as pessoas não acreditaram – o NY Times não acreditou, por exemplo.

E é aqui que o documentário começa a revelar o grau de insanidade de Kaufman e as eventuais razões para o seu comportamento. Temos o seu colega de quarto na universidade a dizer que o sotaque de Foreign Man era o seu e que Kaufman o roubara, usara, sem sequer o reconhecer ao antigo colega. Temos amigos a dizer que quando Kaufman estava a desempenhar Latka não bebia, não fumava e era inocente face às mulheres (como Latka), mas quando se punha a desempenhar Clifton fumava, bebia, drogava-se e pinava tudo o que mexia, incluindo prostitutas, tal como Clifton.

Uma amiga diz que ele nunca se sentiu seguro no mundo e que nunca conseguiu entender a complexidade da sua vida emocional e talvez a raiz dos problemas esteja aqui: Kaufman era um puto cujo melhor amigo era o avô, chamado Papu – quando o avô morreu, os pais não tiveram coragem de lhe dizer, optando por uma mentira: Papu foi viajar. O próprio pai admite que isso foi um erro e que desde esse dia Andy começou a passar os dias parado, a olhar pela janela à espera do avô.

Nascido em Great Neck, logo em miúdo Kaufman começou a entreter festas de criança. Quando tinha 16 ou 17 anos fugiu de casa e dormiu debaixo de um banco de um jardim. É ele próprio que diz que nesse período bebia e tomava drogas. Adorava o livro Estrada Fora, de Jack Kerouac e pediu ao pai para ler – o pai aquiesceu e acabaram a ler e a chorar juntos. O pai, note-se, tinha imensa dificuldade em falar com ele.

É possível que a licenciatura que fez – Kaufman estudou performance televisiva na universidade – lhe tenha mostrado o caminho a seguir em termos de humor. Mas havia algo nele de indomável: durante o seu estrelato, resolveu servir às mesas; só para não estar aborrecido ia para uma gelataria Baskin & Robbins, que oferecia uma amostra de graça de cada sabor e pedir uma amostra de graça de cada sabor, sendo que eram mais de 30 – o que endoidecia quem estava na fila; no fim de um espectáculo ao vivo tinha 10 autocarros para levar as pessoas a beber leite e comer bolachas.

Era como se simplesmente ser ele próprio não lhe fosse suficiente, como se não soubesse os limites da alteridade – quanto entrar em modo personagem e quando sair dela; como se a sua única razão de existir fosse provocar reações nos outros. Quando estava em plena fase Tony Clifton, dizia aos amigos (como Andy Kaufman) que ia sair da cidade e que o Tony Clifton ia ficar em casa dele – e quando os amigos iam lá a casa ele não estava lá mas Clifton estava – rodeado de prostitutas.

Uma namorada perguntou-lhe se haveria intimidade depois do sexo. Ele propôs um minuto de intimidade e pôs-se a imitar um tipo doce; ao fim de um minuto disse que o tempo acabou. O homem que ficou traumatizado em criança com a mentira dos pais passou o resto da vida a mentir, chegou ao cúmulo de criar personagens para poder mentir de forma mais convicta. E depois, quando teve cancro, os amigos não acreditaram. Mesmo quando morreu as pessoas não acreditaram – o NY Times não acreditou, por exemplo.

Tudo isto é profundamente triste, até porque não saberíamos o que ele conseguiria ter feito se não tivesse morrido tão cedo. Ironicamente, o dispositivo que ele criou para a sua arte – uma espécie de performance comedy no limite do socialmente aceitável – é quase impossível de reproduzir: não temos specials de Andy Kaufman a contar piadas num palco com toda a gente a rir. É curioso perceber que as suas provocações ainda fazem sentido: quando ele desafiou mulheres a lutar com ele, dizendo que nenhuma mulher conseguiria bater num homem e que por isso é que elas não saíam da cozinha, não estava ele a replicar o que ouvimos uma altíssima percentagem de homens dizer, quando não há mulheres por perto?

Podemos acreditar que puseram um homem na Lua – mas nunca poderemos compreender Andy Kaufman, homem e comediante, na sua totalidade.