É verdade que a marca se podia chamar simplesmente P. P de perfeccionista que insiste em rever cada detalhe, afinar o número de pedrinhas numa aplicação de lapela, passar o olho sobre cada ponto do bordado, alterar por completo o tom de um forro. É assim Alexandra Lobato de Faria, que depois de vários anos entre gestão de marcas e branding, com linhas conceptuais bem definidas, se lança numa marca em que o pormenor impera, sem desatenções. King Loves Zilla resume um encontro entre dois “dois mundos ou dois bichos carregados de personalidade, que não vivem um sem o outro”, um King Kong ricamente trabalhado para ocasiões de imponência sem estridências, e uma Godzilla da moda que ataca as ruas de forma prática e criativa, com os divertidos pins do Pacman (que pode pôr ou tirar consoantes o estado de espírito).
Apaixonada por casacos, blazers e coletes, são eles a estrela maior da coleção que acaba se de estrear em exclusivo na Stivali, um reduto multimarca que desde 1986 serve uma curadoria atenta no pronto-a-vestir, um regime que se mantém, garante a diretora Paula Moldes. Luxo, sim, mas exclusividade acima do preço, que neste caso facilmente ascende aos 3 mil euros. Para um sucedâneo deste manifesto, conte com uma coleção de t’shirts (que rondam os 160 euros). A título pontual, os limitados metros de tecido que aplica a cada criação também podem estender-se a calções ou calças que rematam os conjuntos. E no inverno, entrarão em cena os sobretudos, e ainda os pelos e um toque de cor. Garantido, depois do processo de customização, é que não há duas peças iguais. Como cada cliente. Comecemos por aí.

Vamos a apresentações desta King Loves Zilla. Falamos de peças únicas, desde logo na quantidade (e nos tamanhos)?
Alexandra Lobato de Faria (ALF) – O que costumo fazer é comprar poucos metros de cada tecido. No fundo, dará para dois casacos. Quando assim é faço dois números, e cada um deles tem a sua própria customização, para termos de facto peças únicas e adequadas a cada pessoa. Normalmente tenho um número que vai do 36 ao 40. Se houver alguma necessidade, consegue-se fazer um número maior por encomenda, não está excluído mas ainda não entrei por essa via.
De onde vem a matéria-prima?
ALF – Como compro os tecidos em qualquer lado nunca sei o que vou ter. Compro em Portugal, França, Itália, Istambul, e já vieram coisas da Índia, mas principalmente Europa. Acaba por ser mais affordable até pelos impostos. Cada vez que vem um tecido há uma inspiração diferente, é por isso que é difícil por encomenda algo como “ah, eu quero um casaco encarnado, com aplicações em dourado”. A resposta é talvez.
O objetivo não é andar a correr o mundo à procura, antes explorar o que vai descobrindo?
ALF – Sim, é o que trago das minhas experiências e viagens, o que me inspira, que depois adapto e enriqueço com a peça em si. Torno ainda um pouco mais especial. Ando por todo o lado em armazéns bons, revendas. Os tecidos são de boa qualidade, só assim se consegue uma peça boa. Viajo de propósito para fazer compras. Posso procurar algo e fazer por medida no atelier, mas não é essa a ideia.
Como decidiu lançar-se na marca? Dizia-me que aqui tínhamos de chamar a diretora da Stivali, a Paula Moldes, para se juntar à conversa.
Paula Moldes (PM) – Independentemente de já conhecer a estratégia da Alexandra, e a forma como foi desenvolvendo a marca ao longo de muito tempo, e todo o trabalho de estudo dos tecidos, o lado artesanal, para nós Stivali fez sentido porque é uma marca exclusiva, não é uma coleção sazonal, está constantemente a ser criada.




É um conjunto de peças que se vai renovando, até porque o stock é limitado.
PM – Exatamente, há sempre novidades. Todos os meses a Alexandra me diz que tem um tecido novo, um bordado novo; há sempre algum input para a marca. Hoje a exclusividade banalizou-se de tal forma que quando se consegue apresentar uma peça verdadeiramente exclusiva, não é exclusiva porque tem um preço exagerado. Pode ser perfeitamente normal para toda a produção que a peça exige, achámos que é uma marca que faz diferenciação do que existe no mercado.
O fator escassez reforça esse interesse numa montra de abundância? Podemos comprar algo caro, de facto, e no entanto ser serial.
PM – Exatamente. O fato raridade é importante. E não é caro apenas porque é caro. Quando olhamos a vemos como está cosido, bordado. Quando se agarra e se vê que o fio é bom, os botões, a seda, tudo isso eleva a peça num mundo em que existem muitas marcas e oferta, que competem umas com as outras.
Muito terá mudado desde que Stivali abriu em 1986. A Paula já está aqui desde 1990.
PM – Já nem sei (risos) Que dia é hoje? Fiz anteontem 34 anos de Stivali. Esqueci-me completamente.
Acompanhou clientes ao longo destas décadas. Aquilo que procura hoje quem entra por aquela porta é diferente do que procurava no começo?
PM – O cenário é totalmente diferente do que era mas, e com alguma humildade digo isto, ao longo dos anos a Stivali conseguiu manter um ADN muito definido. Nunca quisemos ter as marcas todas, queremos ser uma loja onde se chega e conseguimos ter marcas que se coadunam umas com as outras, a cliente sente que pode criar um estilo. Isto para nós é o mais importante. O facto de conseguirmos atender clientes com diferentes personalidades e estilos de vida. A maioria são trabalhadoras, têm vidas muitos díspares. Quando chegam não vêm só pelas marcas mas pela conjunção de marcas.

Continuam a propor uma curadoria?
PM – Uma curadoria exclusiva. Há 40 anos tínhamos clientes que entravam porta adentro e perguntavam “o que é que tem para mim?”. Hoje temos as filhas ou as netas que entram e dizem o mesmo: “o que é que tem para mim?” Embora o mundo da moda tenha crescido e alterado imenso, temos tentado adaptar-nos, mas fieis aos nosso propósitos e clientes. Daí também a entrada desta marca da Alexandra. Quando olha para ali e tem Coperni, Wardrobe, e depois tem King Loves Zilla, aquilo sobressai.
Aquela ideia de styling ao vivo, como o desfile que organizaram de lançamento da marca, em que misturam a marca da Alexandra com outras peças de luxo?
PM – Foi um ponto em que a Alexandra bateu imenso.
ALF – A mistura era precisamente mostrar as clientes as várias combinações possíveis com os casacos. O casaco é uma peça de desfecho no styling, e é interessante como pode entrar sobre diferentes bases: chique, cool, com uma t’shirt, seja para ir lanchar ou a uma festa. Mostrou como podem ser super versáteis quando combinados de diversas maneiras.
A cliente atual procura sobretudo essa versatilidade?
PM – Acho que neste momento a cliente pede essa versatilidade. As pessoas querem coisas novas e comprar, mas vivemos uma estrutura económica em que sentem que têm que ter versatilidade. A calça ou a camisola que comparam pode ser ótimas mas têm que ser versáteis. O futuro da moda é poder conjugar tudo com tudo.
ALB – Não é suposto ficar no armário só para uma ocasião
Mas a cliente está mais disponível para esse risco no guarda-roupa? Imagino que nem toda a gente se imagine a usar peças como as da King Loves Zilla.
ALB – Eu acho que ainda pode ser um pouco difícil para as pessoas, e em particular as portuguesas, de durante o dia usar uma peça um pouco mais fora do básico. Mas tive o exemplo no desfile de que quando veem as possibilidades, adoram.
PM – Temos aqui na Stivali uns cinco armários de vestidos compridos, peças completamente fora, que nem sequer são muito visíveis na loja. Acabámos por seguir uma forma muito inusitada no desfile que resultou. De tal forma que muitas peças da Alexandra foram imediatamente vendidas após o desfile.
Por vezes há dificuldade de projetar o resultado final, como imaginar a decoração de uma casa vazia?
PM – Exatamente, e esse sempre foi o nosso trabalho de fundo, o cliente chega cá e não vai vestir o que está no manequim da montra. Vai experimentar uma série de coisas que tenham a ver consigo e que possam transmitir cá para fora. Estavam felizes de ser uma marca portuguesa com super qualidade, agora na Stivali.
Não é costume no entanto acolherem marcas nacionais. Não contando com a Cinco, esta foi uma estreia?
PC – Já tínhamos tido a Kolovrat, há muito tempo, que pessoalmente considero um trabalho brilhante. Depois tivemos aquela experiência divertida com a Cinco, para outro tipo de cliente, e agora a King Loves Zilla, que tem um nível de exclusividade e riqueza de pormenores superior.

Como vê a produção nacional num contexto de arrefecimento do mercado do luxo?
PM – Nós, Portugal, enquanto produção estamos fenomenais. Temos ótima mão de obra nas nossas fabrica, investimento em maquinaria, tecnologias, e não podemos esquecer que temos uma produção no mercado do luxo neste momento que é muito significativa. Marcas como Balenciaga, Victoria Beckham e muitas outras são todas produzidas em Portugal com uma qualidade fantástica. As t’shirts da King Loves Zilla são produzidas na mesa fábrica da Balenciaga. Não há uma costura, um ponto torto.
ALB – Tudo isto para o mass market de luxo mas para o de pequenas quantidades, como é o caso acabou a parte de fábrica, que é impossível.
PM – A Alexandra tem tido uma luta de estudo e de trabalho à procura do fornecedor certo para aceitar os próprios portugueses. As vezes o nosso problema também reside aqui.
[A polícia é chamada a uma casa após uma queixa por ruído. Quando chegam, os agentes encontram uma festa de aniversário de arromba. Mas o aniversariante, José Valbom, desapareceu. “O Zé faz 25” é o primeiro podcast de ficção do Observador, co-produzido pela Coyote Vadio e com as vozes de Tiago Teotónio Pereira, Sara Matos, Madalena Almeida, Cristovão Campos, Vicente Wallenstein, Beatriz Godinho, José Raposo e Carla Maciel. Pode ouvir o 7.º episódio no site do Observador, na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E o primeiro episódio aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui, o quarto aqui, o quinto aqui e o sexto aqui]

A escala continua a ser um dos maiores desafios quando se pensa em produzir?
PM – A nossa escala é muito pequenina mas é ótima e temos gente de imenso valor.
ALB – Faço tudo em Portugal, um a um, num pequeno atelier. Se os forros ainda forem iguais conseguem cortá-los, mas cada tecido não é igual. Tem que ser cortado um a um. Não há dez cortes de uma vez. É nos detalhes que está a diferença, o reverso da gola, o interior, o forro, tudo isto é tão customizado que é impossível fazer nem que seja numa pequenina fábrica. Vou à procura de pessoas que ainda bordam, acabamentos no Norte, etc Isto tem o seu tempo, mesmo que às vezes procuremos alguma rapidez e pôr a máquina a andar.
Já personalizava para si?
ALB – Já, eu adoro peças e tenho uma tara por casacos, acho que é uma peça que nos finaliza. A maneira como no fundo enfrentamos a rua, o exterior, adoro. Gosto de peças únicas, ricas, que podem ter um Pacman, um detalhe diferente que naquele dia me apeteceu pôr. Fiz casacos para mim em modistas e vim trabalhando, até que resolvi pensar que isto podia ser um modelo de negócio.

Já tinha amigas a pedir-lhe casacos?
ALB – Não, não.
PM – Acho que isso foi essencial, a Alexandra não se deixou levar por essa ideia de fazer para a amiga A ou B. A sua formação académica é gestão e pensou nisto como modelo de negócio do princípio ao fim, não como um hobbie, com passos consolidados para o futuro, inclusivamente até começar a ter alguma representação internacional.
Já tinha o vosso respaldo?
PM – Quando a Alexandra me convidou para ver os primeiros 10 casacos que fez, achei logo que tinha imenso potencial. Não mos vendeu na altura (risos). Achava que ainda não estavam perfeitos, perfeitos. Fiquei fascinada e depois fui eu própria que incentivei. Na Stivali temos esta coisa de pegar nas marcas antes de serem muito badaladas e de as trabalharmos. Lá consegui convencê-la a apresentar as peças e a marca.
Falávamos do perfil do consumidor. Há mais ponderação na compra ou o impulso continua a dominar?
PM – Acho que impulso cada vez menos, porque as pessoas têm mais consciência do seu eu, da sua capacidade financeira. Nós somos o tipo de loja que diz à cliente “não compre porque isso não é para si”. Ou porque não fica bem, ou porque vai vestir pouco. Não queremos que cheguem a casa com uma peça fantástica sem saber depois o que fazer com ela. O importante é chegar à cliente através do seu armário. Sentir que não compra só por comprar.
O cliente hoje também chega bem mais informado?
PM – Sabe que às vezes o excesso de informação pode ser caótico. As pessoas por vezes chegam com a imagem de alguma rede social e querem aquilo, e nós temos que dizer que não vai ficar igual…mas o nosso posicionamento no mercado será sempre mais recatado e a bater na exclusividade. Os clientes e parceiros que entram nesta casa sabem que não interessa tanto a marca a, b, c. Tivemos Chanel 30 anos e nunca publicitámos isso. Queremos é que a cliente saia com algo que a faça sentir poderosa.
No caso da King Loves Zilla a ideia é vir mesmo à loja, uma vez que não há site?ALB – [ri-se] Isto vai devagarinho. Ainda há-de haver. Como são casacos únicos estamos sempre a ter que fotografar, entram, saem, é difícil montar um site, mas até para contar a história é importante. De qualquer forma não sei se é propriamente para venda online isto tipo de peças.
PM – Em muitas marcas assistimos a um retrocesso do online. As pessoas ainda não compraram nada e já sentem que têm tudo, com o excesso de informação. As lojas estão num momento de se reinventarem mas esta reestruturação vai trazer uma maior experiência para o cliente.