Os dados são conhecidos e os especialistas alertam: após um enfarte agudo do miocárdio ou um Acidente Vascular Cerebral, e caso estes episódios não sejam fatais, a verdadeira batalha começa depois da alta hospitalar. A chamada prevenção secundária, um conjunto de intervenções essenciais para reduzir o risco de novos episódios e de morte prematura, continua a ser o elo mais fraco na resposta às doenças cérebro-cardiovasculares (DCCV) em Portugal. E esse vazio tem custos em vidas e em qualidade de vida, garantem os especialistas.
Vejamos: em 2023, morreram em Portugal 9.200 pessoas por doença cérebro-vascular e 3.744 por enfarte agudo do miocárdio [imagem 1], segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE). Estas duas doenças continuam a representar a principal causa de morte no país, com um impacto especialmente marcado nas faixas etárias mais avançadas: no caso dos AVC, a maioria das mortes ocorre em pessoas com mais de 75 anos, enquanto o enfarte tende a causar mortes em pessoas mais novas, incluindo adultos em idade ativa [imagem 2].
Em Portugal, quando um enfarte ou um AVC acontecem (na denominada “fase aguda” da doença), o sistema de emergência é rápido a reagir para salvar aquela vida. Em 2024, a Via Verde AVC encaminhou 7.886 doentes para tratamento hospitalar urgente, enquanto a Via Verde Coronária foi ativada em 2.397 casos suspeitos de enfarte [imagem 3].


A Via Verde AVC e Via Verde Coronária são sistemas que respondem a protocolos de saúde e que após contacto com o 112 (INEM) garantem que os doentes com suspeita de AVC e de enfarte são encaminhados para hospitais que têm exames, equipamentos e profissionais especializados — disponíveis naquele momento e para aquele doente. E assim garantem uma avaliação e tratamento mais rápidos, como explicámos nesta reportagem sobre a Via Verde AVC e nesta sobre a Via Verde Coronária.
O grande problema vem depois. É no que acontece após a alta hospitalar que se concentram as fragilidades do sistema. Após um primeiro enfarte ou AVC, o risco de sofrer um segundo evento é significativamente mais elevado. Ou seja, sobreviver a um primeiro episódio não significa que o perigo tenha passado — pelo contrário.
Segundo o relatório da European Federation of Pharmaceutical Industries and Associations (EFPIA), até 20% dos doentes que recebem alta hospitalar após um enfarte têm outro, um AVC ou morrem de doença cardiovascular no primeiro ano. No caso do AVC, o risco de recorrência é igualmente preocupante: 25% a 30% dos AVC são recorrentes, e a taxa de repetição pode atingir os 40% ao fim de dez anos após o primeiro evento, alerta a European Stroke Organisation.
É por isso que a chamada prevenção secundária é considerada uma intervenção crítica. Trata-se de um conjunto de estratégias que devem atuar após o evento, com o objetivo de reduzir este risco aumentado: controlo rigoroso de fatores de risco como colesterol, tensão arterial e diabetes, adesão à medicação prescrita, mudança de estilos de vida e participação em programas de reabilitação que ajudam o doente a recuperar e a manter a saúde cardiovascular e cerebral. Como definem as recomendações emitidas pela European Society of Cardiology e pela European Stroke Organisation, a prevenção secundária visa precisamente reduzir o risco de recorrência através de intervenções médicas e alterações de comportamentos.


Mas a responsabilidade não pode recair apenas sobre os doentes e as suas famílias. Nem é possível exigir apenas aos utentes do Serviço Nacional de Saúde que mudem radicalmente de hábitos ou que passem a adotar comportamentos de vigilância e controlo de fatores de risco.
É, pelo menos, essa a opinião dos especialistas consultados pelo Observador — que reforçam que há uma necessidade clara de melhorar os percursos de referenciação para programas de reabilitação, uma ausência de registos nacionais contínuos sobre reincidências e uma subutilização de práticas recomendadas, como o controlo rigoroso dos fatores de risco e a integração de cuidados [imagem 5]. É neste espaço crítico, na prevenção secundária, que Portugal enfrenta ainda um dos seus maiores desafios na resposta às doenças cérebro-cardiovasculares.
Como sublinha Luís Negrão, assessor médico da Fundação Portuguesa de Cardiologia, “a ausência de dados sobre segundos eventos, adesão terapêutica e acesso à reabilitação continua a ser uma constante em Portugal”. Para o médico cardiologista, esta falha compromete, não só a avaliação real do impacto da prevenção secundária, como também a capacidade de planear políticas de saúde mais eficazes. “Para planear é necessário dispor de informações seguras, adequadas e recentes, mas na maior parte das vezes a informação que se deseja não corresponde aos dados que conseguimos obter.” E mesmo quando existem alguns dados, acrescenta, estes nem sempre são os mais relevantes para orientar a decisão, enquanto muitos dos indicadores realmente necessários simplesmente não são recolhidos de forma sistemática.
O percurso ideal depois de um enfarte ou de um AVC está bem definido e é apresentado no esquema validado pelos especialistas [imagem 4]. Tudo deveria começar com a atuação do INEM, através da Via Verde AVC ou da Via Verde Coronária, que assegura o transporte urgente para o hospital mais indicado para tratar aquele doente, naquele momento. Depois, no hospital, o primeiro passo é a estabilização clínica e o início do tratamento. Segue-se o internamento hospitalar em unidade de referência, onde os médicos avaliam o risco de um novo evento e definem um plano de cuidados para o futuro. Este plano deve incluir a referenciação (encaminhamento) para um programa de reabilitação, essencial para ajudar o doente a recuperar e a prevenir novos problemas.
A partir daqui, o ideal seria garantir um acompanhamento próximo e continuado: controlar os fatores de risco (como colesterol, tensão arterial ou diabetes), assegurar o seguimento nos centros de saúde e ajudar o doente a manter a adesão ao tratamento e a seguir os estilos de vida recomendados.
Na prática, contudo, este percurso ideal não está a ser garantido para todos os doentes. O Plano Nacional para as Doenças Cérebro-Cardiovasculares (PNDCCV), publicado em 2017 pela Direção-Geral da Saúde, enfatiza ser necessário “promover e dinamizar a monitorização dos indicadores adequados para uma permanente avaliação do impacto das doenças cérebro e cardiovasculares na população portuguesa”. Mas ainda não existe um registo nacional contínuo que permita acompanhar sistematicamente os doentes após o primeiro evento, apesar de esta ser uma das metas expressas no próprio PNDCCV, que prevê a criação de sistemas de monitorização e registo de eventos [imagem 5].
“As doenças cérebro-cardiovasculares continuam a ser a primeira causa de morte em Portugal, mais do que alguns tipos de cancro”, dizia ao Observador em julho de 2024 o cardiologista Filipe Macedo, à data coordenador do Programa Nacional das Doenças Cérebro-Cardiovasculares. “Não percebo porque não foi dada prioridade a estas patologias no Plano de Emergência para a Saúde.”
No caso da reabilitação, os dados mostram que a oferta existente não é suficiente para garantir cobertura adequada. Em 2019, existiam 25 centros com programas estruturados de reabilitação cardíaca em Portugal. Entre estes, apenas três detêm atualmente certificação da European Association of Preventive Cardiology [imagem 5].

A cardiologista Ana Abreu, reconhece os avanços, mas sublinha que o sistema continua longe de garantir acesso universal: “A reabilitação cardíaca já funciona alguma coisa em Portugal, mas pode funcionar muito melhor. Já temos alguns centros e têm vindo a aumentar”, algo que defende como fundamental “uma vez que uma das estratégias que funciona na prevenção secundária é exatamente a reabilitação cardíaca”. Mas, como alerta a professora de Cardiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e coordenadora do Programa de Reabilitação Cardiovascular da mesma instituição, esta intervenção ainda não é tratada como uma prioridade pelo sistema de saúde. “Era necessário que o Ministério da Saúde considerasse que esta intervenção é essencial, como está consagrado nas guidelines [diretrizes clínicas], após um enfarte, após uma cirurgia coronária, ou agravamento de insuficiência cardíaca”, afirma.
“O problema é que isto é sempre feito um bocadinho em paralelo ao resto — não há mais dinheiro nos hospitais por fazer reabilitação, é preciso uma equipa multidisciplinar [composta por profissionais de várias áreas da saúde] e é difícil concentrar esforços de vários serviços numa só equipa”, explica Ana Abreu. E, portanto, “algo que é verdadeiramente essencial, e que reduz custos, não é visto dessa maneira pelos nossos órgãos superiores de saúde. Não é considerada uma prioridade.”
Esta carência é reconhecida no próprio PNDCCV, que aponta como necessária a inclusão dos programas de reabilitação no financiamento regular e na política pública de saúde cérebro-cardiovascular [imagem 5]. Até hoje, esta meta continua por concretizar.
A insuficiente cobertura fica evidente nos números: segundo Ana Abreu, hoje, apenas cerca de 12% dos doentes com enfarte e internamento hospitalar fazem reabilitação. E sublinha a desigualdade no acesso: “Nem todos os hospitais têm reabilitação, nem todas as pessoas são referenciadas para a reabilitação e, portanto, não estão a fazer o que deviam fazer”.

Esta visão é partilhada por Cristina Gavina, presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia e diretora do Serviço de Cardiologia na ULS de Matosinhos: “Embora, no geral, o controlo seja muito mau nos doentes após síndrome coronária aguda, em locais com acesso a reabilitação cardíaca os resultados podem ser melhorados”.
No caso do AVC, o cenário é semelhante. O neurologista Vítor Tedim Cruz, presidente da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral (SPAVC), lembra que no PANORAMA-AVC, um estudo nacional de doentes com AVC promovido pela SPAVC, a recorrência foi de 1,8% no total de eventos nos primeiros seis meses. Além disso, no mesmo período, apenas cerca de 50% teve consultas de seguimento. “Isso dificulta a redução de risco a longo prazo.” Relativamente à reabilitação destaca ainda que “há de facto muito a investir nesta área e há verdadeiramente necessidade de trabalho multidisciplinar na comunidade”.
Também Diana Aguiar de Sousa, membro da direção da SPAVC refere que o facto de apenas 25% dos doentes terem consulta especializada ao fim de três meses após a alta e de metade dos doentes só ter acesso a esta seis meses depois, conforme resultados deste estudo, é “particularmente alarmante, uma vez que a reavaliação em consulta especializada em doenças cérebro-vasculares é um passo fundamental para a otimização da estratégia da prevenção secundária após a alta hospitalar, o que acentua as lacunas significativas a este nível em doentes com AVC”. Por outro lado, a neurologista na ULS de São José destaca que que “estes dados sublinham a necessidade urgente de reforçar os circuitos de seguimento pós-AVC, assegurando o acesso atempado a cuidados especializados e, com isso, a uma prevenção secundária eficaz e sustentada”.
Em resumo, persistem a ausência de registo nacional contínuo pós-enfarte ou AVC e a necessidade de melhorar os percursos de encaminhamento dos doentes. O percurso ideal está definido, mas, para muitos doentes portugueses, simplesmente continua a não ser uma realidade. O que aumenta consideravelmente o risco a que estão sujeitos — nomeadamente de morte.