"Tiques", movimentos involuntários, palavras que "saem boca fora": 8 respostas sobre Tourette
Os sons e movimentos repetitivos, de curta duração surgem subitamente, manifestam-se desde cedo e trazem muito sofrimento social e emocional. O que se pode fazer?

1 O que é a síndrome de Tourette?
É uma perturbação neurológica que se manifesta por tiques motores e vocais repetitivos. Não são “tiques” vulgares, temporários, que desaparecem de forma espontânea.
Estes gestos involuntários devem-se a algumas áreas do cérebro que controlam movimentos e comportamentos e que estão alteradas (especialmente os circuitos que envolvem os núcleos da base, tálamo e córtex cerebral). Como são zonas que comandam gestos e respostas a estímulos, manifestam-se de forma por vezes exuberante.
“A síndrome de Tourette não afeta a inteligência, mas pode ter repercussão importante sobre a qualidade de vida, dependendo da gravidade dos sintomas”, diz João Massano, médico neurologista, do Hospital Universitário São João e da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
O nome deve-se ao neurologista francês Georges Gilles de La Tourette, que identificou esta síndrome no século XIX.
2 Que tiques são esses e como se manifestam?
Os tiques motores surgem primeiro na face, geralmente piscar e revirar os olhos, franzir a testa ou mexer a cara. Mais tarde progridem para o pescoço, membros superiores e inferiores, como esticar os braços, mexer os ombros, abanar a cabeça ou saltar.
Os tiques vocais incluem sons como grunhidos, estalidos, gritos, fungadelas, tosse, palavras ditas repetidamente. São sons sem qualquer intenção comunicativa. Algumas pessoas repetem palavras ou frases que ouviram ou imitam gestos que viram. Palavrões acontecem num número reduzido de pessoas.
São, no fundo, movimentos ou sons estereotipados, de curta duração, que surgem subitamente. Os primeiros tiques aparecem habitualmente entre os quatro e os oito anos de idade, com pico de gravidade por volta dos dez-doze, mas prolongam-se pela idade adulta.
João Massano dá um exemplo. “Uma criança pode começar com um piscar insistente dos olhos, seguido de estalos com a língua ou repetição de palavras sem contexto. Os tiques tendem a acentuar-se em períodos de cansaço ou ansiedade. Podem melhorar e até desaparecer até aos 25-30 anos, não sendo possível prever, em cada pessoa, se isso vai acontecer ou não.”
3 São palavras e gestos controláveis?
Sim e não, depende de cada caso. Os tiques são inevitáveis, irresistíveis, em resposta a uma vontade ou sensação que causa ansiedade ou tensão. O tique proporciona um alívio temporário até que a tensão se intensifica novamente, o que leva à repetição.
“A maioria das pessoas com síndrome de Tourette consegue ter algum controlo sobre a realização dos tiques, por vezes passando um dia inteiro na escola ou emprego sem fazer tiques, que depois executam durante longos períodos de tempo ao chegar a casa, como uma ‘descarga de energia’. Isto demonstra que os tiques não são involuntários, sendo muitas vezes designados por semi-voluntários”, diz o neurologista.
A impulsividade é uma das características que pode levar a comportamentos proibidos como, por exemplo, pressionar indevidamente um botão de alarme de incêndio. Atos ou comentários considerados socialmente ofensivos também podem ocorrer, como dizer a alguém desconhecido no autocarro que tem uma roupa feia.
4 A ansiedade e a depressão podem ser sinais e sintomas?
Não são sintomas, são problemas que coexistem. Ou seja, viver com tiques constantes pode causar frustração, baixa autoestima e dificuldades sociais. Pessoas com Tourette podem ter dificuldade em manter a atenção nas tarefas, por causa dos tiques e dos esforços para os controlar. A ansiedade pode intensificá-los, tornando-os difícil de gerir e de interromper.
Nesta síndrome, a Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção e pensamentos obsessivos e compulsões são frequentes. João Massano salienta, a propósito disto, que a qualidade de vida fica comprometida nos “casos em que existem pensamentos obsessivos e compulsões, que podem ser suficientemente graves para constituir um diagnóstico formal de perturbação obsessiva-compulsiva”.
5 Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico é clínico, ou seja, baseado na história médica, interpretação dos sintomas e resultados do exame neurológico. Não há nenhum teste, laboratorial ou de imagem, que confirme a condição. Os sinais observados pelo médico são importantes.
A pessoa tem de apresentar, antes dos 18 anos de idade, múltiplos tiques motores e, pelo menos, um tique vocal (em simultâneo ou não), que ocorram durante mais de um ano, depois do primeiro.
“Os tiques aparecem várias vezes ao dia, quase todos os dias ou de forma intermitente. Vão variando ao longo do tempo em qualidade e intensidade, sendo muitas vezes difícil identificar fatores que favorecem a melhoria ou precipitem o agravamento”, diz o neurologista.
O diagnóstico é, muitas vezes, colocado como hipótese pelos pais, professores ou pediatras, e confirmado (ou não) por um neurologista ou pedopsiquiatra. “Nalguns casos pode ser necessário fazer alguns exames específicos para excluir outras causas, quando o quadro clínico apresenta aspetos atípicos ou existe história familiar de outras doenças que desencadeiem esta necessidade.”
6 Há causas estudadas? Sabe-se porque se manifesta?
Ainda não são completamente compreendidas as causas, mas há dados que indicam um papel importante da genética. Estudos com irmãos gémeos e familiares mostram que a síndrome tende a ocorrer mais frequentemente entre parentes próximos. No entanto, avisa o neurologista, “não se trata de um gene único, mas de uma combinação de fatores genéticos que aumentam a suscetibilidade ao desenvolvimento da síndrome”.
Em resumo, é uma situação de origem multifatorial, com influência genética significativa, mas também modulada por elementos do ambiente e do desenvolvimento cerebral.
7 De que forma afeta a vida social e emocional?
De várias maneiras e com impacto. Pessoas com Tourette sentem vergonha, vontade de se isolarem, solidão, ansiedade social ou baixa autoestima, sobretudo em contextos onde a compreensão é limitada.
Um exemplo: uma criança que emite sons involuntários em sala de aula pode ser interpelada ou hostilizada pelos colegas, ou até chamada à atenção por professores desinformados. Isto não só prejudica o desempenho escolar, mas também a sua confiança e motivação. Outro exemplo: um adolescente com tiques motores evidentes pode evitar festas ou encontros sociais por medo de julgamento, prejudicando o desenvolvimento de amizades e outras relações.
“Muitas vezes, os tiques são visíveis ou audíveis e geram olhares, comentários, bullying, principalmente na infância e adolescência, períodos marcados por grande pressão social para a pessoa ‘se encaixar’”, diz João Massano.
Nos adultos, pode interferir na vida profissional. Pessoas com tiques podem encontrar obstáculos em entrevistas de emprego ou sentirem-se desconfortáveis no trabalho. Apesar disso, muitas conseguem desenvolver estratégias de adaptação e ter uma vida normal, um percurso académico de sucesso, relacionamentos sociais normais e carreiras exemplares.
As cantoras Billie Eilish e Jamie Grace, o cantor Lewis Capaldi (que tem um documentário sobre o tema, How I’m Felling Now) ou o ator Seth Rogan são algumas figuras públicas com Tourette.
8 Como se trata?
Não existe cura, mas há tratamentos que melhoram os sintomas e a qualidade de vida. O tratamento é individualizado, dependendo da gravidade dos tiques e da presença de comorbilidades (outros problemas) como hiperatividade, défice de atenção, obsessões, compulsões, ansiedade ou depressão. A prioridade é tratar os sintomas que mais impacto causam.
“Algumas formas de terapia cognitivo-comportamental podem ser úteis na redução dos tiques, mas nem sempre é fácil encontrar profissionais preparados. Nos casos mais graves e com impacto na vida diária, pode ser necessário recorrer a medicação para reduzir a frequência e intensidade dos tiques”, explica João Massano.
Em qualquer caso, é necessário explicar a situação de forma clara à pessoa afetada e à família. Até para aceitar o diagnóstico e eventuais propostas terapêuticas. No caso das crianças com síndrome de Tourette pode ser útil comunicar com a escola para esclarecer os professores e criar compreensão, reduzindo assim o estigma e ajudando a criar um ambiente propício à satisfação das necessidades dos mais novos.