Na freguesia de Santa Eulália, e na vila de Arouca, não há quem não conheça Rui Fernandes, o carteiro. Quando há dois anos ficou de baixa (pela primeira vez na vida), levantou-se um coro de interrogação, e depois uma onda de solidariedade. O que começou por parecer uma infeção respiratória era afinal um quadro de insuficiência cardíaca. Aos 46 anos, o homem corpulento, antigo desportista, sempre pronto para um convívio com a família, os amigos ou colegas de trabalho, viu-se de repente confinado ao sofá da sala, o dia inteiro, porque “não tinha forças para nada, nem para andar”. Foi a família (a irmã, a mulher e as duas filhas) quem o segurou e resgatou de uma depressão em que mergulhou, na sequência do diagnóstico.
Rui percorreu uma autêntica via-sacra entre hospitais, até encontrar uma especialista em insuficiência cardíaca no Hospital de Santo António (HSA), no Porto, que o medicou e acompanha desde então. Até que começou a sentir-se subitamente melhor. Quando voltou a fazer exames, o quadro tinha melhorado mais do que alguma vez era suposto. Voltou a trabalhar, mudou radicalmente o modo de vida, a começar pela alimentação. Regressou à vida da comunidade, da paróquia, e nestas próximas eleições autárquicas vai ser candidato à junta de freguesia da sua terra.
Emília Rocha
“Fiz tudo o que estava ao meu alcance. Até zangar-me com ele”
Um total de dez irmãos forma a descendência da mãe e do pai de Rui Fernandes, o mais novo de todos. Emília, poucos anos mais velha, é aquela com quem mantém uma relação mais próxima. É sócia da mulher de Rui num gabinete de contabilidade, em Arouca, onde mora também. Em 2022, o laço coeso desta família ameaçava partir. Emília lembra-se de ouvir a cunhada lamentar-se constantemente “de que o Rui andava constipado”, ao ponto de lhe faltar o ar durante a noite. Depois veio a consulta com a médica de família, que o mandou fazer alguns exames de rotina. A seguir entrou de baixa. “Não podia ser. O meu irmão, para estar de baixa, tinha de sentir-se mesmo muito mal”, conta ao Observador, Emília Rocha. E foi na realização de um ecocardiograma, nos serviços locais da Santa Casa da Misericórdia, que surgiu o alerta: Rui tinha de ir imediatamente ao hospital, o coração dava sinais de fraqueza.
“Nunca me vou esquecer desse dia. Nem de outro, em que o acompanhei a uma consulta de cardiologia, e no final perguntei à médica se era grave. Ela disse-me: ‘É. O seu irmão pode morrer a qualquer instante’. Foi um choque para mim”.
Nos dias e meses que se seguiram, Emília (Mila, para a família), desdobrou-se em cuidados com o irmão. Perante o diagnóstico, recusava-se a acreditar naquela sentença de morte antecipada. Percorreu “vários médicos, com os exames dele na mão, para saber outras opiniões”. E todos lhe disseram o mesmo: Rui estava condenado à insuficiência cardíaca, que lhe limitaria a vida. “O meu irmão era um rapaz alegre, cheio de vida e bem-disposto. E de repente vi-o ali, deitado no sofá, sem forças para nada”. Mas Emília não podia dar sinais de fraqueza na frente dele. E sabia que tinha de o fazer reagir, procurar tratamento, encarar a doença. Martelava-lhe na cabeça a frase de um dos médicos: “É caso para um dia destes tombar para o lado”. Lembrou-se do pai, que morreu novo, aos 54 anos, na sequência de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) fulminante. “Fiz tudo o que estava ao meu alcance para o ajudar. Até zangar-me com ele”, recorda Emília.
Via o irmão “ir-se abaixo, afundar-se deprimido, fechar-se sobre ele”. Ao mesmo tempo via a sua cunhada exausta. “Já andávamos a tratar da reforma de invalidez dele… e houve um momento em que tive de o chamar à razão, numa altura em que ele dava sinais de melhoras. Um dia, fui eu com ele à consulta do HSA, para podermos ter uma conversa. A Dr.ª Catarina, especialista do HSA — que foi um anjo da guarda que nos apareceu — explicou tudo muito bem”. Sem esconder a gravidade do problema, transmitiu-o com toda a calma. “Serenou-me muito, dizendo que iríamos por etapas, para ele conseguir recuperar alguma função cardíaca.”
No regresso, Emília acabou por “dar uns berros” ao irmão: “Tive de lhe dizer que toda a família estava a sofrer, sobretudo a minha cunhada e as meninas [as filhas de Rui] e que ele não pensasse que era o único a sofrer no mundo com uma doença destas, porque assim não estava a ajudar”. O clima ficou tenso, mas resultou. “A verdade é que ele reagiu. Levantou-se do sofá e começou a caminhar, a fazer pela recuperação.”
Emília acredita que a cura do irmão ficou a dever-se “sobretudo à fé dele, à bondade da pessoa que é. Alguém que lá de cima lhe disse: ‘Rui, obrigado’”.
Carlos Soares
“Ia buscá-lo de carro depois das caminhadas”
Carlos Soares, 62 anos, era o chefe do posto de correios de Arouca — e por isso superior hierárquico de Rui Fernandes — quando a insuficiência cardíaca se anunciou. Também ele o notava cansado, naqueles primeiros meses de 2022. A relação laboral há muito que evoluíra para uma amizade funda. E por isso, quando naquele dia, ao telefone, Rui lhe disse “chefe, se calhar não posso ir trabalhar mais”, choraram os dois, cada um para seu lado. Carlos, que então coordenava uma equipa de dez pessoas, habituou-se a ver no Rui “o trabalhador exemplar, que desafiava o trabalho, sempre disponível, sempre a incentivar os outros”. Carlos ficou imóvel, e a seguir a tentar encontrar as palavras “para contar à equipa”. Afinal, Rui entrara de baixa “para fazer uns exames e umas consultas, mas nunca pensámos que seria alguma coisa grave”. Fez-se silêncio nos Correios de Arouca.
Quando o chefe soube da dimensão do problema, encheu-se de coragem. “Tinha de o ajudar, como pudesse.” Passou a visitá-lo regularmente, a acompanhá-lo com conversas, até colocando-se ao lado do amigo nas curtas caminhadas à volta de casa. “Vinha ter com ele e animá-lo. E quando ele começou a conseguir caminhar mais, e a ir até mais longe, ia buscá-lo de carro, depois.”
Quando Rui voltou ao trabalho, muitos meses depois, o amigo chefe ficou atrapalhado. “Porque o conhecia, e temia que ele quisesse logo fazer esforços, fazer as coisas a um ritmo como antigamente.” Então, decidiu acompanhá-lo, para evitar que se esforçasse demasiado. Para garantir que cumpria horários, que deixava para amanhã o que não pudesse fazer hoje, ao contrário do que acontecia antes da doença.
No início deste ano, Carlos entrou na pré-reforma. Deixou de ser o chefe, mas continua a ser o amigo a quem Rui liga sempre, e com quem se encontra regularmente. “É uma amizade para a vida.”
Anabela Fernandes
“Durante muito tempo o Rui tinha medo de fazer qualquer coisa”
Rui e Anabela estão casados há 23 anos. É uma vida de partilha, desde o dia em que começaram a namorar. “Ele já era esta pessoa alegre e bem-disposta, cheia de vida”, recorda a mulher, Anabela, contabilista de profissão, mais discreta e reservada.
Quando Rui começou a acordar de noite, com falta de ar, tentou disfarçar. “Dizia que estava maldisposto, que se calhar tinha comido demais, e ia fazer um chá.” Até ao dia em que não se sentiu capaz de ir trabalhar. Foi à urgência e o médico que o observou prescreveu-lhe um antibiótico para o que parecia ser “uma infeção respiratória”. Em janeiro, um mês antes, a família inteira tinha contraído Covid-19, e poderiam ser resquícios, acreditava a mulher. Mas o tempo passava e Rui não melhorava. Depois das idas à urgência, ao centro de saúde, e aos hospitais de Santa Maria da Feira (HSMF), São João (HSJ) e HSA, o diagnóstico caiu como uma bomba no seio da família.
“Quando ele me ligou, naquele dia, depois de fazer o ecocardiograma, a dizer que o que tinha era um problema grave no coração, fiquei sem chão”, recorda Anabela. Na frente dele, mostrou-se sempre forte, mesmo que as lágrimas lhe escorressem mal entrava no carro. Em casa, com as filhas ainda pequenas, também se esforçou por manter toda a normalidade, por garantir que o pai haveria de voltar em breve para casa. “Eu não podia mostrar às meninas que a situação era tão grave. Mas custou-me muito o dia em que o deixei no hospital e, ao chegar a casa, elas perguntaram pelo pai.”
Rui ficou doze dias internado. O caminho entre Arouca e Santa Maria da Feira estima-se em mais de 40 minutos. Mas Anabela organizou-se para que o marido não ficasse um dia sem visita. “Ia todos os dias visitá-lo.” As regras da pandemia ainda vigoravam e isso limitava também a ida das filhas ao hospital. “Aconteceu apenas uma vez, quando um enfermeiro bondoso arranjou maneira de se encontrarem.”
Entretanto, Rui voltou para casa. No escritório, Anabela e a cunhada faziam simulações para perceber como tratar da reforma por invalidez. Os dias eram cada vez mais iguais, o marido deprimia, com a doença. Anabela deixa de ter o marido “sempre pronto a fazer tudo, que começava logo a fazer o jantar quando chegava a casa”, para este que agora mal se movimentava: “Eu chegava a casa e ele estava na mesma ponta do sofá onde tinha ficado de manhã”, recorda. Foram tempos difíceis. Para tratar do jardim e cortar a relva vinha o pai de Anabela. Apesar de preferirem não integrar esta reportagem, os sogros de Rui terão sido uma peça muito importante desta rede de apoio.
Foi um tempo em que Anabela sentiu o mundo desabar. Era a casa, eram as filhas, era cuidar do marido, era o trabalho no gabinete. “Ele centrou-se muito na doença. Como se fosse o único doente no mundo. Chegou um dia em que eu não aguentei e desabafei com a minha cunhada. E ainda bem que o fiz porque a conversa dela com ele mudou as coisas.” “Durante muito tempo, talvez já passado um ano, ele tinha medo de fazer qualquer coisa”, recorda a mulher, que muitas vezes o incentivava a usar a linha direta com o hospital, para esclarecer se podia ou não.
Anabela também é crente, embora não tão devota como o marido. Ainda assim, a cura de Rui fê-la acreditar mais. “Quando os próprios médicos olham para o caso dele e ficam admirados… houve uma enfermeira que lhe disse: ‘Se você pediu a alguém, agradeça. Vá e agradeça, porque realmente eu nunca vi um caso destes’”.
No ano seguinte, o casal foi a Itália, ao templo de Santa Rita de Cássia, agradecer.
Cármen e Joana Fernandes
“O pai pôs toda a gente a comer sem sal”
As duas filhas do casal Fernandes são réplicas do pai e da mãe, cada uma delas. A mais velha, Joana, 17 anos, aluna do 12.º ano, é tão reservada quanto Anabela, enquanto Cármen, de apenas 12, é “tal e qual o pai”. Apesar de querer ser fisioterapeuta quando crescer, bem podia fazer uma carreira na área da comunicação. É ela quem apresenta os espetáculos na escola. Ambas foram fundamentais para a recuperação do pai, no tempo em que esteve em casa, de baixa.
“O que me lembro dessa altura é de ele estar aqui em casa, mesmo em baixo”, conta Joana. Já Cármen, sempre com resposta pronta, “achava estranho ele estar sempre em casa e não ir trabalhar”. Até que um dia a avó contou-lhes o que ele tinha. “Só não nos disse que ele podia morrer, de repente.”
Agora que o susto parece ter passado, as filhas de Rui riem-se do que, no momento, não acharam ter piada: “O pai ficou tão obcecado com a recomendação de não poder comer como comia antes, que passou a comer tudo sem sal. Ele e nós…”.
Ambas estranhavam ver o pai ali sem fazer nada, “sem estar a cozinhar”, logo ele que é um cozinheiro de mão-cheia. Sentavam-se com ele a ver televisão, por vezes a ouvir música, “para o animar”. Cármen e Joana consideram que, hoje, “o pai é uma pessoa completamente diferente daquela que viveu em casa quando estava doente. É muito animado, mete-se com toda a gente”. “Agora voltou a ser novamente o pai que era antigamente, só com uns quilos a menos.” Acabaram-se os temperos, os caldos condimentados. Com o tempo, também as filhas se habituaram. Até de o ver no que consideram “o registo cómico: andar à volta da casa, com um guarda-chuva, a caminhar”. Agora comprou uma passadeira e passou a outro nível.
Catarina Gomes
"O caso do Rui é um exemplo inspirador”
Quando Rui Fernandes foi referenciado para a clínica de insuficiência cardíaca do HSA, em 2022, na sequência de um “internamento por insuficiência cardíaca”, a cardiologista Catarina Gomes percebeu que tinha em mãos “um diagnóstico inicialmente delicado”. Cardiologista há 13 anos, com a subespecialidade de insuficiência cardíaca há nove, determinou a partir dali um plano terapêutico personalizado, com ajustes na medicação, mudanças no estilo de vida e seguimento regular em consulta. “O Rui teve uma adesão exemplar à terapêutica e, graças a isso, os sintomas diminuíram, a função cardíaca melhorou e recuperou qualidade de vida. Este caso é um exemplo inspirador de como, com acompanhamento próximo e motivação, se pode alterar o prognóstico destes doentes”, sublinha.
A médica explica que, nos últimos anos, os avanços no tratamento da insuficiência cardíaca têm transformado o prognóstico e a qualidade de vida dos doentes. “Os fármacos continuam a ser a base do tratamento, com destaque para os betabloqueadores, antagonistas dos recetores de mineralocorticoides e, mais recentemente, os inibidores de SGLT2”, sigla para designar o transportador de glicose e sódio que se encontra nos rins. Trocado por miúdos, quer isto dizer que Rui continua a tomar quatro classes de medicamentos que melhoram a função cardíaca e os sintomas da insuficiência. “Mas sendo uma doença crónica, não podemos falar em cura. Apenas numa extraordinária recuperação. O Rui recuperou totalmente a função cardíaca, mas não pode deixar de tomar os vários medicamentos que toma, para controlar a insuficiência cardíaca”, explica a médica.
Catarina Gomes enfatiza que, atualmente, “a abordagem é dinâmica e centrada no doente”. Ela, que sempre exerceu no HSA, acredita que é possível conjugar na sua especialidade, o conhecimento técnico rigoroso com a oportunidade de causar um impacto significativo na vida dos doentes.
Rui Fernandes
“Eu não sabia o que fazer da vida. Podia ter morte súbita”
No início de fevereiro de 2022, Rui Fernandes começou a acordar de noite. Sentia-se a sufocar, com falta de ar. Estivera doente um mês antes e mentalizou-se que talvez fosse uma das vítimas do Covid longo. Levantava-se, para respirar melhor. Durante o dia, começou a notar-se cansado ao fazer tarefas simples e leves.
Depois de ir ao médico, e de tomar um antibiótico para o que parecia ser uma infeção respiratória, ficou ainda pior. “Chegou um momento em que não conseguia dar quatro passadas seguidas.”
“A minha sorte foi ter a minha médica de família, Dr.ª Diva Oliveira, que não descansou enquanto não percebeu o que eu tinha”, sublinha Rui. Entre vários exames, pediu uma ecografia ao coração. E logo aí se percebeu que vinha de lá a origem do problema.
Rui sempre fora saudável, nunca estivera de baixa. Nessa semana estava. Não se sentia mesmo capaz de trabalhar, durante o dia ficava cansado. E de noite tinha falta de ar. O técnico de diagnóstico disse-lhe logo que “o problema não era o pulmão, mas o coração”. E que Rui precisaria com urgência de ser visto num hospital central. Ainda no gabinete, veio uma médica ver o exame, e não esteve com rodeios: “Disse-me que eu podia ter morte súbita.” Engoliu em seco, veio cá fora e ligou à mulher, primeiro, depois ao chefe.
O diagnóstico haveria de demorar dois meses a chegar. Foram muitos médicos e exames, até que uma ressonância magnética ao coração ditou o veredicto final. Do HSJ, Rui foi transferido para o HSMF, e de lá acabou por ser encaminhado para o HSA, onde encontrou a cardiologista Catarina Gomes. “Foi a minha sorte, um anjo que me apareceu”, diz ao Observador. Foi medicado para a insuficiência cardíaca, esteve quatro meses de baixa. “Eu não sabia o que fazer da vida. Comecei a ter ansiedade e isso piorou tudo.” Uma das possibilidades era ser operado ao coração, para colocar um cardiodesfibrilhador implantável (CDI).
Rui Fernandes sempre foi crente, católico empenhado na paróquia local. Nesses meses tornou-se ainda mais devoto de Santa Rita de Cássia, que os crentes identificam como protetora das causas impossíveis. “Comecei a sentir-me melhor, e a Dr.ª mandou fazer novos exames. Estava eu deitado a fazer o ecocardiograma, quando a médica perguntou por que razão o estava a fazer. Porque não via nada de anormal. Eu julguei que era algum engano.” Afinal não era. “Três dias antes do Natal recebi uma chamada da minha médica. Disse-me que tinha uma prenda para mim, que era a boa notícia: já não tinha nada. Foi como se me tivesse saído o euromilhões”.
Apesar da mudança completa (na perceção do doente e na melhoria da função cardíaca), continua a ser acompanhado esporadicamente na consulta de insuficiência cardíaca, “e a tomar medicamentos, por precaução”.
Rui Fernandes diz que mudou radicalmente de vida. Perdeu mais de 20 kg, mudou completamente a alimentação, nunca mais descurou o exercício físico. Voltou às atividades na paróquia e na junta de freguesia, onde é tesoureiro. Nas próximas autárquicas será ele o candidato a presidente. Acredita que a vida lhe deu uma nova oportunidade e tudo fará a aproveitar.