(c) 2023 am|dev

(A) :: Porque é que insistimos em culpar as vítimas?

Porque é que insistimos em culpar as vítimas?

Violação. Assalto. Burla. Violência doméstica. A culpabilização das vítimas é difícil de entender. Mas, segundo a ciência, é alimentada pelo preconceito, medo e pela ilusão de que o mundo é justo.

Sofia Teixeira
text
Rodrigo Mendes
illustration

Onde há uma vítima, há sempre alguém que pergunta se não terá sido ela a causadora do seu próprio mal. À mulher vítima de violação pergunta-se “o que é que levava vestido”, ao homem assaltado diz-se que “não devia estar ali àquela hora”, sobre a vítima de violência doméstica comenta-se que “ficou porque quis”, ironiza-se que pessoas burladas “foram pouco inteligentes” ou que alguém atropelado na passadeira “devia ter tido mais cuidado”.

Porque é que no tribunal da opinião pública a vítima é frequentemente colocada no banco dos réus?

A principal explicação para a culpabilização das vítimas reside numa teoria dos anos 1960, formulada por Melvin Lerner, professor de psicologia social. A Crença no Mundo Justo propõe que as pessoas têm necessidade de acreditar que o mundo é um sítio ordenado, previsível e, sobretudo, justo. Nada disso é necessariamente verdade, mas um pouco de fé nestas crenças é essencial para o nosso bem-estar e para sermos funcionais, para assim nos ajudar a lidar com a incerteza e com o medo, para ter objetivos e para fazer planos a longo prazo. Paradoxalmente, tornamos o mundo ainda mais injusto, por causa da nossa dificuldade em lidar com a injustiça.

E o que é uma coisa injusta? “É uma situação em que consideramos que alguém não teve o que merece, ou seja, quando acontece uma coisa má a uma pessoa boa ou quando a uma pessoa má acontece uma coisa boa”, diz Isabel Correia, professora e investigadora em psicologia social no Instituto Universitário de Lisboa, cujo trabalho se centra precisamente nos fatores e mecanismos que explicam a legitimação da injustiça e da vitimização, entre eles o fenómeno de culpabilização da vítima. “Sendo a justiça uma necessidade fundamental do ser humano, a existência de vítimas inocentes, ou seja, alguém que sofre sem culpa ou responsabilidade, é dissonante com essa necessidade fundamental.”

Nestas situações, a necessidade de justiça motiva-nos a repô-la, seja ajudando a vítima ou punindo o culpado. Mas se isso não nos for possível, então, resolvemos o assunto de outra forma: mudamos a nossa perceção do que aconteceu. Isto pode ser conseguido, explica a investigadora, “quer considerando que não aconteceu nada de mau, por exemplo, considerar que a vítima está a exagerar o seu sofrimento, achar que a vítima deve procurar aspetos positivos no que lhe aconteceu (…) e no limite, negar a ocorrência da própria vitimização; quer considerando que a vítima não é uma pessoa boa, por exemplo, considerando que as pessoas ‘atraem’ o que lhes acontece, desvalorizar a vítima nas suas qualidades morais ou culpabilizá-la.”

"A necessidade de justiça motiva-nos a repô-la, ajudando a vítima ou punindo o culpado. Mas se isso não nos for possível, resolvemos o assunto de outra forma: mudamos a nossa perceção do que aconteceu. Isto pode ser conseguido “quer considerando que não aconteceu nada de mau e achar que a vítima está a exagerar o sofrimento ou deve procurar aspetos positivos no que lhe aconteceu, quer considerando que a vítima não é uma pessoa boa e que as pessoas ‘atraem’ o que lhes acontece”, diz a investigadora Isabel Correia.

Este mecanismo — que é um viés cognitivo — cumpre dois propósitos principais. Primeiro, protege-nos do medo de sermos nós os próximos alvos do azar, da violência ou da injustiça: se acreditarmos que foi a vítima que fez alguma coisa de errado, então, podemos também acreditar que, se formos cuidadosos, estaremos a salvo. Segundo, mantém o sentido de controlo, ordem e previsibilidade, descartando a ideia, difícil, de que o sofrimento é muitas vezes arbitrário.

A culpabilização da vítima é especialmente evidente em crimes de natureza sexual e/ou quando os crimes são perpetrados contra minorias ou pessoas em situação de vulnerabilidade, como pessoas em situação de sem-abrigo, o que parece sugerir que há outros preconceitos como a misoginia, o racismo, a xenofobia ou a homofobia que alimentam a dinâmica de culpabilização. De resto, as próprias desigualdades económicas são legitimadas pela crença de que as pessoas têm o que merecem.

No entanto, também há investigação que mostra que os julgamentos culpabilizadores podem ser mais fortes por parte daqueles que partilham com a vítima características que a tornaram vulnerável. “Por exemplo, as mulheres, muitas vezes, culpabilizam outras mulheres vítimas de violência doméstica”, exemplifica Isabel Correia.

Além da crença no mundo justo, considera-se também que a culpabilização das vítimas pode ter sido reforçada por algumas teorias na área da criminologia e vitimologia desenvolvidas após a década de 1940 — nomeadamente as de Von Hentig e Benjamin Mendelsohn — que tentavam explicar a vitimização através dos atributos físicos, características psicológicas e comportamentos das vítimas.

Apesar da sua importância na época, estas teorias são hoje consideradas ultrapassadas — exatamente por responsabilizarem as vítimas — mas muitas das ideias que defenderam continuam a manifestar-se, de forma mais ou menos evidente, nas sociedades contemporâneas — sobretudo na forma como algumas vítimas são tratadas nos órgãos de comunicação social, nos tribunais e no discurso popular…