Quando Anabela Pinto voltou a casa numa cadeira de rodas “50 longos dias” depois de internada no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), ainda achava que poderia vir a acordar de um pesadelo. Mas a realidade estava ali, para lhe mostrar que a partir de então nada seria como dantes. Só uma rede alargada e coesa foi capaz de a segurar à vida, de lhe mostrar que haveria outros caminhos além da estrada que até então percorrera. Tinha 43 anos, era professora e formadora, sempre fora cuidadosa com a alimentação e com o exercício físico.
Naquele fevereiro de má memória, submeteu-se a uma cirurgia que lhe prometeram ser “simples e rápida”, para remover um quisto do pescoço. A meio do processo, sofreu um AVC. Muitos meses de tratamentos não conseguiram reverter a incapacidade declarada em 100%. Foi a sua força de vontade, ancorada numa família omnipresente, que a transplantaram para outra vida: matriculou-se numa nova licenciatura, aprendeu a conduzir um carro automático. Pelo caminho re(uniu) um exército de família e amigos que agora se renova: já tem duas netas.
Mário Coutinho
"Passei a fazer muita coisa que não fazia. A Anabela precisava de ajuda para tudo”
Mário e Anabela levam mais de 40 anos de vida em comum, às portas de Aveiro. Desse casamento, em dezembro de 1982, nasceram dois filhos rapazes, que à data do AVC tinham 16 e 18 anos. Hoje, cada um deles tem a sua família e são pais orgulhosos de duas meninas. Aquela noite de fevereiro de 2008 mudou os planos de toda a família, a começar pelos de Mário, que então era operário fabril, especializado na manutenção industrial. Começou a trabalhar ainda menino, passou pela fábrica da Vista Alegre, mas seria na indústria de moldes que haveria de fazer carreira.
Um ano antes de uma veia entupir no cérebro da mulher, matriculara-se na universidade. Frequentava então o primeiro ano do curso de Engenharia e Gestão Industrial na Universidade de Aveiro. Trabalhava por turnos. Deixou a mulher no CHUC para uma cirurgia “simples e de curto internamento”, mas quando lá chegou, no dia seguinte, para a visitar, havia más notícias à sua espera: Anabela sofrera um AVC durante a operação, não se sabia como e quando iria acordar. “É difícil explicar o que senti naquele momento. Ninguém nos prepara para uma coisa destas. Foi muito complicado”, diz ao Observador, ele que passou a ser o elo mais forte da casa. “Até então, só cozinhava em dias especiais e passei a ser o cozinheiro de serviço. Assim como passei a ter que fazer muita coisa que não fazia, desde logo a acompanhar os meus filhos.” Cometeu alguns erros, sobretudo com eles, diz. “Ambos estavam a sofrer também, porque isto afetou toda a gente, e eu concentrei-me demasiado na mãe, em ajudá-la a recuperar, afastando-os.”
Mas durante os 50 dias em que Anabela esteve hospitalizada não falhou uma visita. Quando a foi buscar, depois da alta, e chegaram a casa, tratou de garantir que tinha as comodidades possíveis: mudou o escritório do primeiro andar para o rés-do-chão, colocou varões de apoio pela casa para que ela pudesse começar a levantar-se, a equilibrar-se. Depois veio a reabilitação no Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro – Rovisco Pais, na Tocha, durante quase meio ano. “Não deixei de ir ter com ela um único dia”, recorda Mário, atualmente já aposentado.
Além da fábrica mantinha uma pequena oficina de instalações elétricas em casa. Quando Anabela voltou para casa, “precisava de ajuda para tudo”. O marido tornou-se um apoio permanente. Também ele queria acreditar que a mulher haveria de recuperar a força e os movimentos do lado esquerdo. Passou muitas horas “a investigar, para ver soluções. Ainda cheguei a projetar uma luva que a ajudasse a mexer a mão, mas depois percebi que não iria funcionar”. Comprou-lhe um andarilho, uma sanita portátil, mas foi percebendo que Anabela os rejeitava.
Nessa infindável procura por melhorias na vida da mulher, experimentaram quase tudo. Médicos famosos em Barcelona, acupuntura através de elétrodos, terapias diversas. “Em 2010, dois anos depois, comecei a ensiná-la a conduzir só com a mão, devagarinho. Mas percebemos que o melhor era comprar um carro automático”. Anabela foi ganhando autonomia, na exata medida em que o marido foi aumentando o grau de preocupação com ela, “sempre que sai e deixa o telemóvel em casa”. Ainda assim, sabe que esse foi um passo de gigante para a mulher.
Alice Loureiro
“Era eu que levava a minha filha para todo o lado”
Nos primeiros tempos depois do AVC, Alice Loureiro foi uma espécie de sombra para a filha. Nesse tempo ainda se deslocava sem a muleta que hoje a ajuda a caminhar, agora que já completou 85 anos.
Depois do choque, dos momentos de angústia que a faziam chorar sem parar na sala de espera do hospital, e do medo de perder Anabela, encheu-se de coragem para ajudar a filha na recuperação. Estava sempre lá, junto dela, para tudo. “Era eu que levava a minha filha para todo o lado, enquanto o meu genro estava a trabalhar. Em casa, muitas vezes disse ao meu marido: ‘desenrasca-te tu, que tenho de ir ajudar a nossa filha’. Deixava a minha vida toda para andar com ela de um lado para o outro, fosse consultas, fisioterapia, qualquer coisa”.
No meio da tragédia, guarda na memória como um momento alegre e bonito o dia em que a filha voltou para casa. “Fizemos aqui um almoço, com a família toda, para a receber”.
Durante a reabilitação no Rovisco Pais, “levava-lhe tudo o que podia para a animar. Fazia-lhe rabanadas, levava morangos e dióspiros, por exemplo, fruta de que ela gostava”. Mas quando Anabela voltou para casa e se defrontou com o que seriam limitações permanentes, abateu-se sobre ela muito desânimo. E foi a mãe quem a incentivou “a ir estudar outra vez”, qual motivação de vida. “Eu vinha passar a ferro, fazer limpeza à casa, tudo o que fosse preciso.”
Nesse vaivém constante, voltou a andar com a filha pela mão, como quando era menina num retrocesso que não imaginara. À distância dos anos acredita que as orações e preces ajudaram na recuperação de Anabela.
Angélica Correia
“Fui a ouvinte de todas as conquistas”
Há muitos anos que Angélica Correia trabalha num centro de formação profissional, em Aveiro. Foi lá que conheceu Anabela Pinto e assim começou uma amizade que se estreitou mais ainda depois do AVC. Ambas falam de “uma empatia muito grande”, que nasceu entre módulos e horas de formação.
Um dia, ao abrir o e-mail, Angélica tinha uma mensagem de Mário, dando conta do que acontecera a Anabela. Mais tarde, sabendo que conhecia alguém no Centro Rovisco Pais, ele e os filhos solicitaram-lhe ajuda para agilizar a ida mais rapidamente. De permeio, foi visitá-la a casa. “Foi chocante para mim porque estava habituada a uma pessoa cheia de vida. Eu brincava muitas vezes e dizia-lhe que ela parecia uma boneca de porcelana, muito bonita, muito rosadinha, e cheia de genica”. De repente, a amiga que era um poço de vitalidade estava ali “reduzida a uma cadeira de rodas”.
Angélica disfarçou o choque. Ficou “muito orgulhosa porque ela pediu ajuda para se levantar e me poder abraçar. Recordo isso com muito carinho, o que só demonstra a força que tinha em querer superar”.
Anabela foi mantendo-a a par de todas as etapas que ia superando, das estratégias que ia arranjando para fazer tarefas em casa, como estender roupa, por a mesa, fazer a cama, ou outras. Olhando para trás, Angélica considera que o seu papel na rede de Anabela foi talvez “o primeiro recetor das boas notícias, a ouvinte”. “Em todas as conquistas – voltar a conduzir, voltar a estudar, quando soube que ia ser avó – a Anabela veio partilhar comigo”, recorda a amiga. Ambas continuam a marcar cafés e chás para colocar a conversa em dia.
Angélica diz que Anabela personifica bem uma frase que dizia muito ao filho, quando era pequeno: “Desistir não é opção”.
Pedro Baptista
"A Anabela chegou muito em baixo, mas depois empenhou-se na recuperação. Foi muito bom vê-la a emergir desse estado"
A primeira memória que o fisioterapeuta Pedro Baptista guarda de Anabela Pinto é “de uma pessoa muito frágil e bastante debilitada, como de resto acontece com quase todas as que recebemos depois do AVC”. Há 20 anos que Pedro trabalha no Centro de Reabilitação Rovisco Pais, que a debilidade e a revolta dos doentes fazem parte do seu quotidiano. Anabela deu entrada neste centro pouco depois de ter voltado para casa, mas ainda assim já tinham passado quase dois meses do AVC. E é sabido que “quanto mais cedo as pessoas começarem a fisioterapia, mais resultados têm”.
Pedro não era o único, mas foi um dos fisioterapeutas que estabeleceu uma relação mais próxima com Anabela. “Lembro-me perfeitamente das dúvidas, dos receios, se o braço voltaria a mexer, ou a perna, tudo era desconhecido. Foi um processo que requereu da nossa parte muita paciência e muita empatia. A determinada altura, ela própria capacitou-se de que tinha de recuperar”.
“Entre a Anabela desse primeiro dia, num registo de fragilidade, até hoje, vejo uma grande evolução”, afirma Pedro Baptista, que tem lidado com “vários tipos de sobreviventes de AVC”. “Há pessoas que parece que sempre foram assim, ou conseguem disfarçar. Outras fazem de conta que aquilo não está a ser um problema. Depois, quando lhes ‘cai a ficha’, quando voltam para casa – porque no Centro estão super-protegidos, num ambiente controlado – é muito pior. No caso da Anabela, ela chegou muito em baixo, mas depois empenhou-se na recuperação. Foi muito bom vê-la a emergir, de certa maneira, desse estado. E da capacidade que teve de voltar a ter autonomia. De a ganhar”.
Anabela Pinto entrou no Rovisco Pais “totalmente dependente”, em cadeira de rodas. Saiu pelo próprio pé. Voltou lá várias vezes, para visitar a equipa multidisciplinar que a acompanhou, coordenada pela médica Paula Amorim.
Maria Teresa Roberto
“A Anabela teve uma evolução formidável. Entrou uma pessoa e saiu de lá outra”
Tinham passado quase dois anos do AVC, Anabela deixara o internamento e a recuperação intensiva, e via-se em casa, a lidar com limitações, mas o pior de tudo era a falta de horizontes profissionais. Quando decidiu estudar de novo, matriculou-se na licenciatura em Tradução, na Universidade de Aveiro. Nesse tempo, a direção do curso estava a cargo de Maria Teresa Roberto, atualmente já aposentada.
Lembra-se bem dos primeiros tempos da aluna, por várias razões, mas sobretudo porque conhecia de perto a doença: o filho, muito jovem, sofrera também um AVC, felizmente revertido com sucesso. “A Anabela teve uma evolução formidável. Entrou uma pessoa e saiu de lá outra”, diz ao Observador, a professora, que viria a tornar-se orientadora da tese de mestrado, acompanhando o estágio, e amiga, afinal.
Não foi fácil enfrentar as pequenas barreiras de uma sala de aula, para quem tinha um lado do corpo paralisado. “Ela usava um saco para transportar os livros e arranjou estratégias para usar o computador. Penso que uma das coisas muito importantes que contribuíram para o sucesso que alcançou [concluiu a licenciatura e fez mestrado] foi a sua maturidade. Se fosse uma pessoa mais nova, não teria tido a paciência que teve com ela própria”.
“Às vezes ela só precisava de mais algum tempo para perceber, para realizar as tarefas. Porque um curso de tradução, além de ter exigência de duas línguas – português e inglês – tinha o desafio da agilidade mental. A Anabela estava disposta a dar-se tempo. Foi um caso de superação exemplar”, afirma.
Teresa Roberto mantém encontros regulares com Anabela Pinto. “Fui uma das primeiras passageiras a andar de carro com ela. Temos hoje uma relação mais cimentada, que alimentamos com os nossos encontros de chá com conversa”, afirma.
Anabela Pinto
“Não conseguia fazer nada sozinha. Hoje já sou autónoma”
Quando acordou da “estranha anestesia”, Anabela visualizava “tudo branco”. É essa a memória que guarda desses instantes, qual réplica do filme Sombras Brancas, obra biográfica do AVC que assolou o escritor José Cardoso Pires.
A professora de português-francês aproveitara as férias da Páscoa para se submeter à cirurgia simples para remover um quisto benigno, no pescoço. A meio da operação, aconteceu o inesperado: um AVC isquémico, que haveria de a deixar paralisada do lado esquerdo. Quando acordou, sentia que havia uma parte do corpo que não era dela. “Eu insistia naquilo: esta perna não é minha!”, recorda, numa manhã de sol em que reuniu em casa a maioria da sua rede de apoio. Faltam os filhos, o irmão, e ainda um tio e o pai, ambos já falecidos.
Anabela era “perfeitamente saudável”, nunca estivera hospitalizada (só para remover as amígdalas, em miúda, e quando foi mãe) e por isso não percebeu logo o que lhe acontecera. Julgou ser efeito da anestesia. Nos dias que se seguiram, não conseguia entender o que lhe acontecera. “Ó Mário, está aqui uma perna que não é minha!” – insistia, ante o silêncio do marido. Médicos e enfermeiros diziam-lhe que “era muito nova e iria recuperar”.
“Passei 50 longos dias internada na unidade de AVC. Entrei pelo meu pé e saí numa cadeira de rodas”, conta. Ao chegar a casa, abateu-se sobre ela uma revolta imensa. “Não conseguia fazer nada sozinha”. Finalmente conseguiu dar entrada no Rovisco Pais, e aí começou um processo de recuperação intensivo, por um período de cinco meses. Durante esse tempo, ia a casa ao fim de semana. Quando regressava à Tocha, mergulhava de novo numa tristeza tamanha. Até que um dia conseguiu largar a cadeira de rodas, e ganhou alento para prosseguir.
Quando regressou definitivamente a casa, “ia dando em doida, porque a vida era só fisioterapia”. Para quem sempre se dedicara a ensinar os mais novos, a passar conhecimento, ver-se sem objetivos “foi muito duro. Eu adorava dar aulas. Gostava mesmo muito do que fazia”. Ouviu então os conselhos da mãe e decidiu voltar a estudar. A vida, como a conhecia, ficara lá atrás. Anabela concluiu o curso de Tradução com distinção, fez mestrado e estágio no gabinete de Tradução da Universidade de Aveiro. Ainda chegou a fazer alguns trabalhos.
Atualmente dedica o seu tempo à fisioterapia (sempre), à dinamização do GAM (Grupo de Ajuda Mútua) de Aveiro, um apoio que a associação Portugal AVC tem espalhado pelo país. E nos últimos tempos descobriu o Kempo, em forma de desporto adaptado. Em junho, terá a sua primeira competição desta arte marcial, na cidade da Guarda. Anda devagar, mas conseguiu voltar a ser autónoma. Volvidos 17 anos, guarda ainda alguma mágoa: “Custa-me perceber como há pessoas que não têm cuidado nenhum consigo, e eu, que nunca fumei, não bebia, era super-regrada, tinha cuidado com a alimentação, fazia caminhadas e andava de bicicleta… tive este azar”.