Mais de 800 profissionais de saúde recusam cumprir a decisão, que consideram discriminatória, de impor novas limitações a estrangeiros não residentes no acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) e admitem praticar atos de desobediência civil.
Numa carta aberta, um “total de 840 profissionais de saúde, incluindo médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, técnicos de diagnóstico e terapêutica e outros profissionais” subscreveram a carta aberta contra a alteração à Lei de Bases da Saúde aprovada no dia 19 de dezembro, referem os promotores, em comunicado.
Ouça aqui as declarações de Bruno Maia, um dos subscritores da carta à Rádio Observador.
https://observador.pt/programas/resposta-pronta/lei-poe-em-causa-saude-publica-e-urgencias/
Para os subscritores, estas alterações condicionam o acesso dos imigrantes em situação irregular, pelo que se comprometem “a continuar a prestar cuidados a todas as pessoas, sem discriminação, considerando que a proteção da saúde da população visada, no âmbito da ética e a deontologia que regem as [suas] profissões, poderá justificar ações de desobediência civil”.
https://observador.pt/2024/12/19/aprovadas-propostas-do-chega-e-psd-e-cds-pp-sobre-mudancas-no-acesso-de-estrangeiros-ao-sns/
Acusando o Governo de promover desigualdades e dificultar o combate a doenças transmissíveis, os subscritores recordam que, em França, uma medida semelhante não avançou devido à oposição de 3.500 médicos.
“Utentes daqui e de outros lados, a nossa porta está aberta para todos. E assim continuará”, prometem.
Para os subscritores, a alteração é discriminatória, viola a constituição e tratados internacionais e “agravará desigualdades, sobrecarregará os serviços de urgência e comprometerá a saúde pública, ao dificultar o acesso a cuidados de saúde em segurança e à prevenção e tratamento de doenças transmissíveis”.
Ouça aqui a entrevista do Bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, à Rádio Observador.
https://observador.pt/programas/resposta-pronta/bastonario-dos-medicos-admite-desobedecer-a-lei/
Em declarações à Lusa, um dos promotores, o médico André Almeida, explica que os profissionais de saúde não podem subscrever uma nova lei que é “discriminatória e atenta contra os princípios de ética e deontologia” ao afastar pessoas do SNS.
A implementação destas regras levará a que “pessoas que trabalham, que são contribuintes líquidos, tanto do ponto de vista tributário como para a segurança social, ficassem sem assistência e o mesmo também se aplica às suas famílias, mesmo inclusivamente para mulheres grávidas e crianças”, afirmou o médico da Unidade Local de Saúde de São José.
https://observador.pt/2024/12/19/psd-diz-que-proposta-sobre-acesso-de-estrangeiros-ao-sns-corrige-grave-erro-do-governo-ps/
“Nós achamos isso inaceitável” e “esperamos que esta lei seja revogada nos órgãos de soberania e que não passe no crivo da Presidência da República”.
No seu trabalho diário, André Almeida lida com pessoas migrantes que estão no país “há bastante tempo, mas devido aos atrasos processuais da AIMA [Agência para a Integração, Migrações e Asilo] e antigamente do SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras] não têm a sua situação regularizada”.
Por isso, estes imigrantes já “enfrentam uma série de obstáculos no acesso ao sistema de saúde”, mas com “esta alteração à lei, estas pessoas vão ser afastadas de assistência essencial”, particularmente nas urgências, explicou o médico.
Segundo um levantamento estatístico, “a população não-residente em Portugal que recorre ao SNS é residual”, escrevem os subscritores, recordando que este tipo de medidas noutros países mostra “os impactos negativos a nível de saúde pública, mortalidade e custos económicos”.
https://observador.pt/2024/12/13/ps-quer-conhecer-dados-sobre-acesso-de-estrangeiros-ao-sns-e-acusa-ad-de-criar-novos-problemas/
No caso espanhol, “a exclusão de migrantes não documentados do sistema de saúde, em 2012, resultou num aumento de doenças contagiosas, maior mortalidade e custos elevados devido à sobrecarga nos serviços de urgência”, obrigando o Governo a rever a lei em 2018.
Na sexta-feira, foram aprovados projetos de Lei do Chega e do PSD e CDS-PP sobre as condições de acesso de cidadãos estrangeiros não residentes ao SNS.
A proposta de lei do Chega altera a Lei de Bases da Saúde de 2019 para limitar o acesso ao SNS a estrangeiros que não residam em Portugal, só lhes permitindo aceder aos cuidados de saúde públicos em casos de emergência ou mediante pagamento.
Também o projeto de lei apresentado por PSD e CDS-PP visa alterar a Lei de Bases da Saúde para travar a “utilização abusiva” do Serviço Nacional de Saúde por estrangeiros não residentes em Portugal, exigindo documentação extra a estes cidadãos.
Ouça aqui as declarações do Bastonário da Ordem dos Enfermeiros, Luís Barreira, à Rádio Observador.
https://observador.pt/programas/resposta-pronta/acesso-estrangeiros-ao-sns-lei-tem-de-melhorar/
Ministra da Saúde diz que profissionais estão a exercer direito cívico
Questionado sobre a carta, a ministra da Saúde afirmou que os mais de 800 profissionais subscritores estão a exercer seu “direito cívico”, considerando “perfeitamente natural” que haja manifestações sobre estas “matérias delicadas”.
Ressalvando que ainda não leu a carta, o que o irá fazer “com muita atenção” quando a receber, a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, disse que “são cidadãos que estão a usar o seu direito cívico de se manifestarem contra uma proposta que foi votada na Assembleia da República e que terá agora também a sua discussão”.
Questionada pelos jornalistas à margem da cerimónia de cedência da posição contratual da Câmara Municipal de Sintra para a Unidade Local de Saúde (ULS) Amadora-Sintra se é uma lei discriminatória, a ministra comentou que se trata de uma discussão que diz “respeito a todos”, não apenas aos políticos e representantes na casa da democracia, considerando ser “perfeitamente natural que haja tomadas de posição, opiniões, manifestações sobre estas matérias”.
Também questionada se poderá haver um revés na discussão na especialidade dos projetos de lei do Chega, do PSD e CDS-PP, para travar a “utilização abusiva” do SNS por estrangeiros não residentes em Portugal, exigindo documentação extra a estes cidadãos, a ministra afirmou que se está a “tentar antecipar uma discussão que é do país e que é do povo português”. “São matérias muito delicadas, em que temos que ter um grande equilíbrio e nós, no Serviço Nacional de Saúde e no Ministério da Saúde, faremos aquilo que naturalmente a lei nos obrigar a fazer, como é óbvio”, declarou.
Reiterou ver com “muita naturalidade” o facto de cidadãos — “independentemente de serem profissionais de saúde ou não” — expressarem a sua opinião, “usarem os argumentos que entendem” e isso “só pode enriquecer o debate democrático”.