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(A) :: O pequeno diário do grande Estado

O pequeno diário do grande Estado

Ao longo desta semana, vimos o nosso Estado a fazer um truque extraordinário: conseguiu estar em todo o lado e, ao mesmo tempo, por falta de comparência, não estar em lado nenhum.

Miguel Pinheiro
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Terça-feira, 17
A presidente da junta dos Olivais comanda uma enorme falange de 260 funcionários públicos que (palavras dela) “trabalham incessantemente, sem descansar”, para garantir que o bom povo que tem a felicidade de habitar naquela freguesia possa passar os seus dias banhado em paz e em concórdia. Por isso, nesta época pré-natalícia, decidiu, como se fosse a reencarnação de um imperador romano, distribuir pão e circo — ou, numa adaptação aos tempos modernos, tolerâncias de ponto. O Estado tem o hábito sovina de permitir tolerância de ponto aos funcionários apenas nos dias 24 e 31 de Dezembro. Mas Rute Lima não se deixa toldar por esta triste falta de ambição. Assim, decretou que, entre 21 de Dezembro e 5 de Janeiro, os funcionários da junta dos Olivais precisarão de trabalhar apenas um único e solitário dia. Não passa pela romana cabeça de Rute Lima que a sua função não é gerir dinheiros privados — é gerir dinheiros públicos. E que, por isso, cada euro que gasta com liberalidades destas é dinheiro que não lhe pertence. Perante as dúvidas e as críticas dos filisteus, Rute Lima mostrou dificuldade em esconder o espanto. “Isto é uma coisa boa”, garantiu. Não haverá por aí alguma alma caridosa que lhe explique?

Quarta-feira, 18
Há não muito tempo, o ministro da Educação tomou um banho involuntário de humildade — que, de resto, são os melhores. Depois de ter anunciado que as geniais medidas do seu Ministério tinham permitido reduzir em 90% o número de alunos sem aulas, foi forçado a reconhecer que essa percentagem tinha saído diretamente do mundo da fantasia. Segundo parece, o Ministério da Educação é incapaz de fazer contas simples de somar e não tem a mais pequena ideia daquilo que se passa nas escolas que pastoreia. Mas adiante. Agora, já de regresso ao planeta Terra, Fernando Alexandre reconheceu que o Estado é incapaz de cumprir a missão que atribuiu a si próprio de assegurar aulas a crianças em idade escolar. Com resignado fatalismo, anunciou às massas: “Vamos ter milhares de alunos sem aulas por muito tempo.” Os pais perceberam o recado: quem conseguir juntar algum dinheiro, deve pôr imediatamente os filhos no privado.

Quinta-feira, 19
O dia amanhece com a confirmação de que a presidente da junta de freguesia dos Olivais não é uma criatura exótica no nosso Estado. Também a Câmara do Seixal decidiu fazer “uma coisa boa”. O presidente da autarquia, Paulo Silva, publicou um edital que se lê como se fosse uma lista de presentes de Natal: nos dias 24, 26, 27 e 31 de dezembro, os funcionários públicos que exercem a sua atividade sob a generosa direção da Câmara do Seixal podem ficar descansadamente em casa enquanto apreciam um brandy e um cigarro (ou uma salada de rúcula, se tiverem inclinações saudáveis). Já aqueles que foram abençoados com a bem-aventurança de trabalharem (por assim dizer) no Centro de Recursos do Movimento Associativo, que depende da autarquia, estarão dispensados de abandonar o seu lar, doce lar entre 23 de Dezembro e 3 de Janeiro. E os funcionários públicos que habitualmente passam os seus (seguramente muito produtivos) dias na Extensão do Ecomuseu Municipal do Núcleo Naval veem o seu local de ofício fechado entre 17 de Dezembro e 8 de Janeiro. O nosso Estado aproveita todas as oportunidades para não trabalhar.

Sexta-feira, 20
Um novo grupo de funcionários públicos decidiu fazer greve — aparentemente, é uma atividade muito acarinhada por quem partilha o privilégio de ter o Estado como patrão. Agora, foram os trabalhadores do Fisco. O que querem eles? Querem aumentos, claro. Mas o Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos não quer uns aumentos quaisquer: exige um aumento de 10% ao ano durante os próximos três anos. Ou seja: o sindicato exige que, até 2027, os funcionários que zelam pelo nosso Fisco tenham um aumento de 30%. Em certo sentido, eu percebo: por que não? No Estado, pelos vistos, o dinheiro aparece sempre.