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Plano Nocional de Leitura (XXVIII)

O’Neill tem fama de ser um especialista em dar recados claros sobre coisas concretas; mas na verdade desconfiava dessas ideias.

Miguel Tamen
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Numa algazarra da Antiguidade um pintor grego gabava-se de fazer naturezas mortas com uvas que enganavam os pássaros; outro pintor apontou para um quadro seu que tinha pendurado atrás de umas cortinas.  O primeiro pintor foi inspeccionar e deu com a cabeça na parede: as cortinas eram parte do quadro; o segundo pintor tinha-o conseguido enganar.  A poesia e a ficção também enganam pessoas desta maneira. Muitos leitores acreditam que ler livros consiste em abrir as cortinas e espreitar para a realidade; outros, por exemplo os apreciadores de pornografia, acham que conseguem debicar as uvas dos poetas.

Nos poemas e nos quadros as uvas não são porém uvas, as cortinas nunca são cortinas, e as pessoas não são pessoas.  Os sentimentos do público são decerto sentimentos genuínos; mas são como o medo genuíno que sente quem acha que viu um bicho, ou com a alegria genuína que sentimos com coisas que acontecem a pessoas que não conhecemos.  A poesia, acredita Alexandre O’Neill (1924-1986) é toda feita para enganar o olho.   É, como lhe chama no título de um esplêndido poema, “Trompe l’oeil.”

Nesse poema O’Neill conta a excursão ferroviária ao Minho de um casal.  Os propósitos são gastronómicos:  bacalhau e uma escapadela.  “P’ra comer,” afirma a excursionista, “só no Norte, só no Norte.”   A observação é familiar, e provavelmente verdadeira.   O poema está também cheio de referências a outras coisas familiares: a perda de cabelo, uma pensão em Viana de Castelo, alguém que faz olhinhos a uma viúva no comboio, um guarda-chuva perdido, e “o azeitinho.”   Com tantas coisas concretas temos desculpa para concluir que só pode ter a ver com a realidade.

“Trompe l’oeil” começa porém com uma pergunta rarefeita que só ocorre aos poetas mais abstractos, copiada do princípio da “Elegia do amor” de Teixeira de Pascoaes: “Lembras-te jóia, daquele bacalhau /que comemos em Viana do Castelo?” Quando encontramos perguntas destas em poemas a nossa resposta é quase sempre ‘não.’  A “jóia” não somos nós, ou alguém que esteja por perto utilmente; não há sinais de bacalhau; e por isso não há ninguém que se possa lembrar daquela viagem ao Minho: em questões de poesia, no máximo, havemos de ir a Viana.

E o azeitinho?  O’Neill tem fama de ser um especialista em dar recados claros sobre coisas concretas; mas na verdade desconfiava dessas ideias.  “Trompe l’oeil” está cheio de promessas vazias e ofensas à linguagem adulta, de sílabas a mais e de rimas más.   São para nós avisos, e por boas razões.  Fomos habituados a achar que ler um poema sobre ir ao Minho é praticamente como ir ao Minho; mas infelizmente não fomos quase nunca habituados a pensar que quando, encorajados por um poema, abrimos a boca para comer o bacalhau, ou nos imaginamos numa pensão mais agradável, acabamos por bater com a cabeça na parede.