(c) 2023 am|dev

(A) :: Os futuros do clima que passam pelos futuros da democracia (e vice-versa)

Os futuros do clima que passam pelos futuros da democracia (e vice-versa)

Depois de quase três décadas a investigar o modo como as alterações climáticas são definidas e re-definidas em diferentes arenas públicas, vejo o momento atual o como o lugar mais baixo de sempre.

Anabela Carvalho
text

Foi recentemente eleito, para liderar o país com o maior contributo histórico para as alterações climáticas o candidato que prometeu rasgar os compromissos internacionais e lançar um novo festim de extração de combustíveis fósseis. No dia em que escrevo este texto, tornou-se público que o chefe executivo da COP-29, no Azerbaijão, foi filmado a promover investimentos nesses mesmos combustíveis. Depois de quase três décadas a investigar o modo como o significado das alterações climáticas é definido e re-definido, em diferentes arenas públicas, em conexão com a conhecimento científico, estratégias económicas e posições político-ideológicas, vejo o momento actual como o lugar mais baixo de sempre.

Enfrentar com seriedade as alterações climáticas implica conceber, projectar e executar mudanças sistémicas nas sociedades. A boa imagem que os governos de Portugal têm procurado construir do compromisso do país com as energias renováveis não tem correspondência em inúmeros sectores críticos, como o da mobilidade, exigindo profundas transformações profundas, com repercussões directas no dia-a-dia de todos. A enorme vulnerabilidade do país a impactos como a intensificação da erosão costeira ou as ondas de calor extremas e os incêndios agro-florestais de larga escala, irá, também, requerer mudanças muito significativas para pessoas e empresas.

Em muitos casos, o país não será impactado de igual modo. Como os projectos de exploração de lítio em várias regiões ilustram, uma mudança de paradigma energético pode gerar novos problemas ambientais, conflitos sociais e choques de visões sobre direitos e deveres de diferentes territórios e comunidades. Quem terá que aceitar ser parte das “zonas de sacrifício” necessárias para alcançar um admirável novo mundo “descarbonizado”?

O Sr. Joaquim, que cultiva as suas batatas e couves à porta de casa na aldeia do Barroso, teve, em toda a sua vida, muito pouca responsabilidade em causar o mal que outros, sim, intensificam todos os dias com as suas vidas de luxo. O Sr. Joaquim e as suas batatas estão muito mais expostos às canículas e aos furacões do que aqueles que vivem as vidas de luxo. Mas, numa tripla injustiça sócio-climática, ainda querem impor ao Sr. Joaquim que pague o preço das “soluções” que permitirão manter as vidas de luxo dos outros.

A distribuição social dos custos das alterações climáticas é profundamente iníqua se atendermos aos seus impactos ou a muitas das medidas para as conter, seja sob a forma de novos “colonialismos energéticos” ou perdas de empregos e rendimentos (pense-se nos protestos dos agricultores no início do ano face às muito necessárias medidas ambientais avançadas por Bruxelas). A iniquidade tem eixos sócio-económicos, inter-nacionais e inter-geracionais, entre outros. Aqueles que nascem agora recebem de imediato a certidão de herdeiros do colapso climático; herdeiros principais se nascerem numa família pobre.

A par com injustiças, as grandes mudanças a fazer têm como pano de fundo uma generalizada desconfiança nas instituições políticas. O crescimento da extrema direita em Portugal liga-se, como se sabe, a percepções de abandono do país rural pelos poderes políticos: por outras palavras, o país profundo dos senhores Joaquins pode rapidamente chegar às bancadas de São Bento. Assim, para que sejam socialmente sustentáveis, as transformações requeridas pelas alterações climáticas demandam o envolvimento dos cidadãos nos processos de análise, decisão e implementação. Mas o país e as suas instituições não têm levado a sério a questão da participação pública, mesmo que muito vertida em lei. As consultas públicas têm sido frequentemente usadas para mera legitimação de planos de ação, não sendo criadas condições para o debate e para a participação alargada, transparente e consequente. Como exercícios fúteis, sem credibilidade, ironicamente alimentam a suspeição face às autoridades.

Há muito mais desafios a considerar. As mudanças promovidas pelas instâncias governativas situam-se dentro dos parâmetros da chamada “economia verde”, com a sua ambição, não totalmente comprovada, de desacoplar o crescimento económico do uso de recursos naturais e da geração de externalidades inconvenientes (vulgo “poluição”). No entanto, a finitude da desejada acumulação material perpétua afigura-se inevitável no quadro do finito sistema terrestre e o prometido caminho de maior igualdade na distribuição das suas benesses há muito que se tornou uma miragem. Neste contexto, bem para lá dos consensos tecnocráticos sobre o “crescimento verde”, é imperativo ouvir e validar os dissensos que apontam para trajectórias alternativas, envolvendo, por exemplo, a tributação do real custo sócio-ambiental da riqueza, uma vasta relocalização de processos de produção, ou — alerta vermelho — o fantasma do decrescimento. A verdade, porém, é que aqueles que têm dado voz a esses justificados dissensos são muitas vezes ridicularizados ou criminalizados, como tem acontecido com activistas climáticos.

Estão, Portugal e o mundo, numa encruzilhada. Por um lado, acumulam-se os sinais de que as democracias podem ser gravemente afectadas pela crescente degradação ambiental e escassez de recursos. Por outro, a alternativa ao aprofundamento das democracias para fazer face ao colapso ambiental será, em toda a probabilidade, a tirania, que certamente não “salvará o planeta” e a maior parte dos que nele vivem. Numa circularidade perfeita, o nosso futuro ambiental comum depende da qualidade das democracias e o futuro das democracias joga-se no tabuleiro das práticas e políticas ambientais.

Anabela Carvalho é professora associada no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. A sua investigação centra-se nos domínios da comunicação e ambiente, ciência e envolvimento político, com particular incidência no tema das alterações climáticas. Co-fundadora e ex-presidente da Secção de Comunicação de Ciência e Ambiente da European Communication Research and Education Association, é membro do Clube dos 52, uma iniciativa no âmbito do décimo aniversário do Observador, na qual desafiamos 52 personalidades da sociedade portuguesa a refletir sobre o futuro de Portugal e o país que podemos ambicionar na próxima década.