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Ca7riel & Paco Amoroso: os novos "baby gangsta" da música latina

No passado dia 11 de dezembro, o duo de Buenos Aires apresentou-se no Porto, na sua única data em Portugal. Atrás de si, trouxe um lastro de salas esgotadas e um vídeo que fez sucesso em todo o mundo.

Filipa Vaz Teixeira
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Passavam pouco mais de 10 minutos das nove da noite e, da sala principal do Hard Club, no Porto, ouviam-se gritos repetidos: “Argentina, Argentina, Argentina”. Nesse 11 de dezembro, quarta-feira, assinalava-se um ano e um dia de governação de Javier Milei, mas não era esse o motivo da euforia de quem bradava a plenos pulmões a pátria de Maradona, Piazzolla e de Borges. As vozes uniam-se para dar as boas-vindas a Ca7riel & Paco Amoroso, fenómeno que, de há uns meses para cá, tem deixado a internet destravada.

Se estes nomes não lhe dizem absolutamente nada, então é porque ainda não tropeçou no concerto Tiny Desk que a dupla de Buenos Aires gravou no dia 4 de outubro, na mítica biblioteca da NPR, em Washington. Há um antes e um depois da publicação desse vídeo, que acumulou 5 milhões de visualizações numa semana e que, com o ano a acabar, contabiliza mais de 18 milhões de visualizações no YouTube.

Nele, Paco Amoroso aparece com um chapéu estilo ushanka (gorro típico da Rússia), de pelo de raposa azul, lembrando a fase Virtual Insanity de Jamiroquai. O chapéu foi desenhado pela estilista Flor Tellado a partir de materiais em segunda mão. Por seu lado, Ca7riel enverga um colete feito de ursinhos de São Valentim, em forma de coração, com TE AMO escrito em cada um deles.

Juntemos a estes visuais chamativos um conjunto de instrumentistas talentosos a improvisar sobre ritmos de diferentes latitudes, uma postura tão descontraída como se o aparato à sua volta nem sequer existisse, uma semiótica pensada ao pormenor – como os vistos obrigatórios de entrada nos EUA estampados nas T-shirts dos músicos – e cinco canções que põem o corpo a dançar sem que nós demos conta disso. O sucesso, em grande parte, passa por aí.

Mas quem são Ca7riel & Paco Amoroso?

Ca7riel e Paco Amoroso são respetivamente Catriel Guerreiro e Ulises Guerriero. Embora os apelidos pareçam iguais, ao ponto de muitos os confundirem como irmãos, há um “i” que faz toda a diferença. Nada que os incomode, até porque, de há uns meses para cá, têm vivido praticamente debaixo do mesmo teto, graças a uma tour que esgotou todas as salas por onde passou.

Vivo en un hotel, y de gira con CA7RIEL / Ya parece mentira, cantam em Baby Gangsta, faixa de abertura de Baño Maria, álbum de estreia da dupla que já lhes valeu 40 datas extra de digressão para 2025, incluindo uma passagem inédita pelo Coachella, na Califórnia, e outra pelo Lollapalooza, no Brasil, onde já estiveram este ano. Em São Paulo, diga-se de passagem, protagonizaram um dos momentos mais invulgares do festival, atuando dentro de um jacuzzi, tal e qual como se apresentam na capa do disco.

O facto de serem um fruto apetecido para público e indústria pode ser explicado por uma mescla de fatores, a começar pelo crescimento global da música latino-americana nos rankings: as receitas deste mercado nos EUA não pararam de bater recordes em 2024, fixando-se nos 685 milhões de dólares no primeiro semestre do ano, mais 7% do que no período homólogo. Recentemente, a plataforma Spotify anunciou que no Top 50 de streamings de 2024 há 12 artistas latinos, o melhor rácio de sempre dentro deste género.

Ainda assim, Ca7riel & Paco Amoroso poderiam facilmente acabar engolidos pelos números, como muitos outros fenómenos casualísticos deste mundo hipermediatizado, não fosse a riqueza da sua estética musical e visual, aliada a uma criatividade apurada. O descaramento provocador que os próprios ostentam, autointitulando-se como duo de “música degenerativa”, torna tudo ainda mais sedutor. Não é difícil olharmos para eles e lembrarmo-nos da dupla Almodóvar & McNamara, pelo modo como desafiam o status quo com sagacidade e exagero, usando os clichés a seu favor e estando-se nas tintas para tudo o que é convencional. Inteligência, talento, insolência, estilo, humor e a bênção da internet e das tendências de consumo de música: assim se gera o hype.

Primeiros passos

Nascidos em Buenos Aires, em 1993, Catriel e Ulises conheceram-se com seis anos. Primeiro, veio a escola primária, depois o ensino musical na mesma academia: Catriel foi para a guitarra, talvez influenciado pelo pai, músico da banda indie rock El Tinto Mandamiento; Ulises escolheu o violino, aprendendo segundo o método Suzuki, teórico musical japonês que acreditava que as crianças tinham capacidade de assimilar fonéticas musicais antes de as teorizarem e passarem à escrita.

A primeira experiência com relativa expressão no mundo da música deu-se em 2010, quando entraram para a banda Astor y las Flores de Marte, um projeto de rock progressivo com salpicos de funk e reggae que já indiciava uma queda clara para o experimentalismo e para a confluência de estilos. Havia neles algo de Mutantes e de Raul Seixas, um gosto pela não linearidade que ainda estava em estado bruto.

A partir daqui, cada um seguiu o seu caminho. Ca7riel assinou dois álbuns — xCVE7Ex (2015) e El Disko (2021) – onde se foi desvinculando progressivamente do rock, aprofundando a sua ligação à música urbana. Ulises lançou Saeta (2021), explorando sonoridades mais eletrónicas. Pelo meio, foram criando alguns singles em conjunto, com destaque para Ola Mina XD (2019), que fez furor na Argentina graças a uma imparável cavalgada trap e a versos como yo soy argentino y no tengo mi money, reflexo de um país a viver o pesadelo da hiperinflação.

Baño Maria

No alinhamento que apresentaram no Porto, Ca7riel & Paco Amoroso revisitaram “Ola Mina XD”, bem como outros temas antigos. Dos tempos a solo ouviu-se McFly e as misturas de Shipea 2 com Viuda Negra e Mi Deseo com Bad Bitch, estas últimas voando da salsa para a pop de Michael Jackson, referência assumida do duo.

Do início da carreira, trouxeram-nos A Mi No e Cono Hielo, música que poderia ter sido composta pelos Disclosure se eles tivessem nascido nas Malvinas e não em Reigate, em Inglaterra. Foi precisamente com o refrão Saco un fernet (un fernet), cono hielo, cono hielo que o concerto terminou, já as vigas de ferro do Hard Club dançavam como se um tremor de terra estivesse a passar por ali.

Contudo, foram os temas de Baño Maria que, sem surpresa, puseram a plateia em delírio, a começar pela tríade de abertura Dumbai, Baby Gangsta e Mi Diosa, tocados com os dois músicos sentados a mimetizar o momento épico do Tiny Desk. Atrás deles, a banda composta por quatro instrumentistas virtuosos, amigos de Catriel e Ulises desde a escola, fazia o que queria das percussões, teclados, guitarra, baixo e samples. O à vontade com que reinventam arranjos, num balanço entre o funk e o jazz, acrescentando novas leituras sobre as gravações em disco, remete-nos para uma versão menos arrumadinha — e, como tal, menos enfadonha — dos Snarky Puppy.

“Eles são uns perfecionistas. Fazem tudo, punk, rock, funk, eletrónica. É perfeito!”, comentavam uns amigos ao nosso lado, já na segunda metade do concerto. Foi nessa altura que surgiu o techno de Sheesh e os lasers de luz verde e azul a varrerem a plateia, bem como “Pirlo”, a “mais triste do nosso reportório», diria Ca7riel: uma balada com direito a uivos doridos e a metáforas futebolísticas — yo sin ti soy como Italia sin Pirlo — em que a máscara de raver cai para enfatizar a farsa que a vida é.

À conquista do mundo, numa “fórmula estranhamente perfeita”

Embora não se considerem vozes politizadas, a verdade é que Ca7riel & Paco Amoroso o são. Na maioria das vezes, de forma dissimulada ou iconoclástica. Noutras, de forma literal, como na La que puede, puede, faixa que, por um lado, alude em tom crítico à motosierra de Milei (nome por que ficou conhecida a política de cortes estatais profundos levados a cabo pelo Governo Argentino); e, por outro, à morte de Natacha Jaitt, ex-modelo e atriz argentina alegadamente assassinada em 2019 por denunciar uma rede de abusos de menores que atuava no Club Atlético Independiente: Si digo verdade’, me van a limpiar como a Natacha Jaitt.

O público tinha essas referências na ponta da língua, bem como todas as letras de Baño Maria. O ambiente era de êxtase, tal e qual o da curta metragem que ancorou o lançamento do álbum. Cada palavra foi soletrada com precisão naquela noite no Hard Club, revelando uma devoção que poderia ser de nicho, não fosse a audiência tão eclética que seria errado encaixá-la numa caixinha.

Gen Z e millennials, portugueses e estrangeiros, homens, mulheres e pessoas não binárias, todos pareciam ter sido selecionados como amostras de várias falanges de uma realidade maior, deixando bem claro o mediatismo que Ca7riel & Paco Amoroso atingiram. O facto de o concerto ter sido inicialmente anunciado para a sala secundária do Hard Club, passando depois para a principal, é reflexo disso mesmo.

A revista de lifestyle HYPETRAK fala de um “grupo viral argentino que está a conquistar o mundo sem sinais de querer abrandar” e a Rolling Stone já os veio classificar como “uma fórmula estranhamente perfeita”. É bem provável que quem esteve naquela sala portuense na noite de 11 de dezembro de 2024 tenha presenciado um momento único. Que tão cedo não seja possível ver estes dois portenhos num cenário tão intimista, nem tão pouco mirá-los de frente para debitar, olhos nos olhos, o diálogo de El Unico.

O boom de Ca7riel & Paco Amoroso está a rebentar-nos na cara e o lançamento de BAÑO MARÍA (En Vivo — Buenos Aires) antevê o mais expectável daqui em diante: multidões, como a que esteve na Movistar Arena no arranque da digressão, a berrar “TE AMO ARGENTINA”, com ou sem ursos de São Valentim colados ao coração.