Gisèle e Dominique tinham os dois 20 anos quando se conheceram. Seguiu-se o que pareceu um casamento apaixonado, três filhos desejados, uma vida profissional cheia em Paris, familiares e amigos que os admiravam enquanto casal e, agora, uma reforma serena e o descanso numa casa no sul de França, em Mazan. Tudo isto aconteceu, de facto. Mas houve mais, muito mais. Tanto, que seria difícil prever, em qualquer fita do tempo que, mais de 50 anos depois de terem unido o futuro, os dois estariam separados, em lados opostos da sala do Tribunal Penal de Vaucluse, em Avignon, num julgamento com alcance mediático internacional.
Durante a sentença, aliás, durante todo o julgamento, Gisèle Pelicot esteve rodeada dos três filhos do casal. Já Dominique Pelicot teve como único suporte a equipa de advogados que o representam. Os dois já não são um casal desde que ele confessou — perante a exposição das provas dos crimes — ter drogado, violado e deixado dezenas de homens violar a sua mulher ao longo de dez anos. Por esses crimes, foi esta quinta-feira condenado a 20 anos de prisão, a pena máxima pelo crime de que estava acusado.
Conhecia os co-agressores online, todos partilhavam e admiravam a mesma perversão: colocar mulheres inconscientes e violá-las “sem o seu conhecimento” — este era, aliás, o nome do chat que utilizavam para planear os abusos sexuais a Gisèle e onde as imagens e vídeos das dezenas de violações foram partilhados de forma regular.
Em 2010, Gisèle e Dominique ainda viviam em Paris e apenas três anos os separavam de uma mudança definitiva para a idílica Mazan onde iriam passar a reforma. Ficariam rodeados de natureza, vinhas e bom tempo nos últimos anos de vida, à espera das visitas dos filhos já adultos e vendo os netos a crescer. Enquanto os planos para o cenário de reforma de sonho eram colocados em prática pelo casal, Dominique Pelicot trabalhava num projeto pessoal: aprender a deixar a sua mulher inconsciente para abusar dela nesse estado.
Só seria apanhado muito mais tarde, depois de ser visto por um polícia a fotografar por baixo das saias de mulheres num supermercado. Depois da detenção veio a obrigação de apresentar o seu material informático às autoridades e foi aí que a realidade paralela que manteve isolada durante uma década se tornou clara — mais de dois mil ficheiros de imagens e vídeos provavam as violações consecutivas à mulher.
Dominique aprendeu a drogar a mulher para a poder violar sempre que queria, como queria e por quem queria
O método foi-lhe ensinado por um homem, que dizia ser enfermeiro, e que enviava, através de fóruns online, fotografias íntimas da sua própria mulher inconsciente, depois de ser sedada. Fez chegar a Dominique Pelicot as instruções precisas sobre as dosagens que necessitava administrar a Gisèle para que o esse mesmo efeito fosse replicado nela.
Seguiram-se meses de testes por tentativa e erro com alguns tipos de fármacos e diferentes dosagens da medicação que era obtida legalmente por Dominique. Dizia sofrer de ansiedade devido a problemas financeiros, escudava-se em vários negócios falhados e nas consequências destes na sua saúde mental para apresentar essa justificação aos médicos.
Contam-se três anos até aprimorar a técnica. Em 2013, já depois de o casal se ter reformado e mudado para Mazan, Dominique tinha percebido qual a dose de calmantes que deixava a mulher inconsciente até à manhã seguinte. Também já a tinha violado nesse estado e partilhado online vídeos desses abusos, até esse momento, ainda a solo. Vestia a mulher com lingerie provocante — que ela não usaria se a pudesse escolher, diria em tribunal — e praticava vários atos sexuais, que sabia que a mulher também negaria num contexto de intimidade em que tivesse de dar consentimento.
A sensação de poder de que dispunha e a segurança no método que desenvolveu, fez com que Dominique fosse ganhando confiança para colocar homens dentro da casa que o casal escolheu para refúgio de final de vida. Foram pelo menos 71 aqueles que lá entraram, muitos deles repetiram o abuso mais do que uma, duas e três vezes. Todos estes reincidentes acabaram esta quinta-feira por ser condenados com maior severidade pelos juízes de Avignon.
Segundo os relatórios da polícia francesa, que incluem as mensagens trocadas entre os agressores reveladas pela CNN Internacional, o contacto inicial entre Dominique e os restantes agressores acontecia sempre no mesmo site, o Coco.fr — que desde agosto de 2024 foi desativado por ordem judicial, estando associado a dezenas de crimes, incluindo o homicídio de um homem em 2018. Deste site, o principal agressor e seus angariados seguiam muitas vezes para o Snapchat, rede social conhecida pela opção de envio de imagens e vídeos temporárias, e para o Skype, onde o cérebro do esquema de violações em série fazia vídeochamadas preparatórias com os “candidatos” a violarem a sua própria mulher.
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“Unhas limpas” e “sem aftershave”. As regras para participar na romaria de violadores em Mazan
“Eu não sei como é que fazes isto, mas sonho fazer o mesmo com a minha mulher e partilhá-lo com cúmplices como tu”, respondeu o utilizador Voyeur 15 em resposta a uma foto de Gisèle adormecida. Antes de enviar o ficheiro através do chat, Dominique tinha acabado de de dar instruções ao homem que a iria violar nessa noite: “Tens de estar limpo e sem aftershave, sem unhas grandes ou sujas.” Não poderia haver marcas ou qualquer tipo de registos que a alertasse.
O cheiro a tabaco também era estritamente proibido, e existiam ainda ordens diretas para abandonar imediatamente a casa de Mazan ao mínimo sinal de que Gisèle pudesse estar prestes a recuperar a consciência — algo que nunca aconteceu.
A romaria continuou, noite após noite e ano após ano, durante dez anos, e foi formada por pelo menos 71 homens, aqueles que foram contados pela polícia nos vídeos recolhidos dos dispositivos de Dominique Pelicot. Mesmo com acesso às imagens, desses, apenas 51 conseguiram ser identificados e levados a tribunal.
“Não sei se o devo fazer esta noite, se a devo tentar ver ser f***. Tu vens até aqui se o fizer?”, questionou numa das noites a um dos cúmplices que respondeu com um conflito de agenda: “Em teoria, sim, não deverei estar a dormir a essa hora… mas não pode ser demasiado tarde”. Dominique indicou-lhe, mesmo assim, que só poderia chegar lá a casa às três da manhã. Ainda recebeu um protesto de volta: “Uma hora depois de tomar os medicamentos ela já costuma estar a dormir, não entendo porque temos de esperar quatro horas.”
Nesta altura, o principal agressor já sabia exatamente o que fazer e como fazer para diminuir o risco da mulher acordar, tal como referiu no chat, quanto mais tempo passasse, mais a sua mulher se “afundava no estado de inconsciência”.
A maioria destes homens que falavam com Dominique morava perto de Mazan e este era a única característica os unia — a proximidade geográfica à casa da vítima. As idades são variáveis, atualmente têm entre 27 e 74 anos. Alguns, cerca de 14, são (ou eram) desempregados, outros trabalhavam em várias áreas, de carpinteiros a técnicos de informática, de guardas prisionais a enfermeiros e até jornalistas. Não refletem nenhum elemento de privilégio ou carência de acordo com a classe a que pertenciam: pode falar-se apenas da classe média trabalhadora em França. Esta quinta-feira, todos foram considerados culpados e condenados com penas entre três e 15 anos de prisão, dois deles com penas suspensas.
Só precisavam de um computador, de algum tempo online e da dose certa de perversidade para mergulhar no esquema de violação de Dominique. Por não ser possível atribuir-lhes características distintivas, a imprensa francesa batizou-os de “Monsieur Tout-le-monde” — na tradução em português “Sr. Qualquer Um”.
Mesmo que alguns tenham sido abusados sexualmente no seu passado, tal “não legitima a prática do crime”, como lembra Ana Leonor Marciano, jurista na União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), que lembra igualmente que não há, como demonstra este caso, um perfil para um agressor sexual.
https://observador.pt/2024/11/28/caso-pelicot-os-50-sr-qualquer-um-que-foram-julgados-em-avignon-provam-que-o-perfil-de-violador-nao-existe/
“Aquilo que podemos sempre afirmar em relação a um violador é que estamos perante alguém que passa literalmente por cima do consentimento da mulher para praticar o ato sexual e que tem necessidade de estabelecer uma relação de poder”, afirma, garantindo que o fim da prática destes atos “não é uma satisfação de prazer, mas sim um alcançar uma necessidade de poder através do ato sexual”.
O perfil é tão não padronizável que um militar de apenas 22 anos — o mais novo dos co-arguidos ao tempo dos factos — terá faltado, no final de 2019, ao nascimento da própria filha para, nessa noite, ir violar Gisèle Pelicot.
“Estamos a falar de dezenas de co-agressores que, quer tenha sido um plano engendrado pelo marido desta senhora ou não, estiveram com ela intimamente, sem que ela tenha dito que sim, porque não estava em condições disso”, afirma Ana Leonor Marciano, que considera incompreensível estes homens terem avançado com o ato sexual “partindo da certeza de que a pessoa estava a dormir”.
“É uma falta de valoração do que são direitos humanos de qualquer mulher, é avassalador, é impensável, no século em que nos encontramos, haver este tipo de entendimento e de legitimação da violência”, acrescenta a jurista.
Gisèle passou dez anos a achar que estava a morrer, mas “nunca imaginou o que era inimaginável”
Para que os desejos destes mais de 70 homens fossem cumpridos, o corpo de Gièle teve de ser drogado vezes sem conta e este fim não foi atingido sem consequências. Nas mensagem reveladas pela CNN, Dominique revelava aos co-agressores a que horas a “colocava a dormir” e pormenorizava até que os abusos só poderiam acontecer três ou quatro horas depois da sedação, para poder ter a certeza do seu estado absoluto de inconsciência.
A mulher depôs em tribunal pela última vez a 19 de novembro e admitiu ter “perdido 10 anos da [sua] vida” devido a preocupações médicas com as perdas de memória inexplicáveis e problemas ginecológicos que lhe eram provocados pelas constantes substâncias que lhe eram administradas pelo marido e pelas agressões sexuais que o mesmo organizava. “Tenho agora 72 anos e não sei quanto tempo me resta”, lamentou, referindo que os anos em que pensou estar doente foram “como uma sentença de morte”. “Pensei que morreria ou acabaria num hospital psiquiátrico”, afirmou no banco das testemunhas do tribunal em Avignon.
As consequências de ser consecutivamente sedada pelo marido — através de medicamentos que este dissolvia na comida e bebida — fizeram notar-se quando ainda trabalhava em Paris. Adormecia em pleno horário laboral, começou a perder peso e a ter falhas ocasionais de memória. Mas os piores efeitos chegaram quando já vivia em Avignon: nessa altura o cabelo caia-lhe em mechas consideráveis, desmaiava ocasionalmente e as falhas de memória transformavam-se em esquecimentos de dias inteiros e num estado de confusão mental permanente que a levou a acreditar, a si e aos filhos, que poderia ter Alzheimer ou um tumor cerebral.
Dominique era o primeiro a oferecer-se para a acompanhar às consultas médicas — quer às de ginecologia quer aos vários exames neurológicos a que foi sujeita — mas nada era diagnosticado. Como relata a BBC, em duas ocasiões Gisèle desconfiou da hipótese de estar a ser drogada. Numa delas reparou na cor verde de uma cerveja que o marido lhe tinha dado e despejou-a à pressa no lava-loiça. Noutra ocasião, reparou numa mancha de lixívia que não se lembrava de ter feito num par de calças novas.
Chegou a questioná-lo diretamente: “Por acaso não me estás a drogar, pois não?”. Dominique reagiu com um ataque de choro e mostrou-se indignado perante a sugestão da mulher. Nesse momento, a resposta certa pode ter passado pela cabeça da vítima, mas para ter seguido a pista era preciso ter imaginado o que o marido lhe fazia todas as noites.
Mas, como disse um cunhado de Gisèle em tribunal, em resposta às dúvidas que eram colocadas pela defesa dos agressores em relação ao desconhecimento da vítima, “é impossível imaginar o que é inimaginável”. Daniel Cotrim, psicólogo e responsável pela área da Violência de Género na APAV, lembra ao Observador que antes deste caso ser conhecido, era pouco provável que alguém pensasse num cenário com os estes contornos macabros e tão específicos. “A violência vai evoluindo da mesma maneira que evolui o pensamento humano e, por isso, o grau de perversidade e de bizarria deste tipo de situações também vai aumentando”, alerta, destacando a importância que a denúncia e o trazer a público do caso tiveram para eventuais vítimas que se reviram em sintomas e sinais relatados por Gisèle.
Traumas do agressor serviram para enquadrar a perversidade dos crimes, mas não serviram de atenuante em tribunal
Em tribunal, a defesa de Dominique Pelicot, descrito como um marido, pai e avô carinhoso e preocupado, justificou a “vida dupla” que o francês levava através de uma “cisão de personalidade” — um mecanismo de defesa psicológica que permite que “duas personalidades opostas, que vivem duas vidas diferentes, possam coexistir dentro do mesmo indivíduo”.
“Não é esquizofrenia, não é um processo delirante, não é algo que faz perder o contacto com a realidade”, esclareceu o psiquiatra Laurent Layet em tribunal, ao testemunhar a pedido da defesa, referindo que o agressor sexual nuns momentos atuava enquanto tal e noutros “alterava o disco rígido” e atuava como o marido, pai e avô dedicado e preocupado que os familiares e amigos próximos sempre descreveram.
Os traumas sexuais que terão provocado a fragmentação da personalidade de Dominique Pelicot têm origem na sua família que tem uma “história confusa e conturbada, marcada por segredos e pela existência de relações sexuais entre adultos e menores”, leu em tribunal o especialista que estudou a formação da personalidade do homem de 71 anos. Revelou que Dominique é o segundo filho de Denis Pelicot e Juliette Rousseau, que já tinha dois filhos com André Pelicot, irmão mais velho de Denis. Ou seja, as quatro crianças eram ao mesmo tempo meios-irmãos e primos.
Poucos anos após o nascimento, os seus pais adotaram uma menina com deficiência mental, Nicole, vítima de incesto dentro da família que a acolheu. A informação foi obtida a partir do depoimento de Dominique e corroborada por dois outros irmãos que prestaram declarações. Além disso, aos 9 anos, foi vítima de abuso sexual por uma enfermeira do hospital Châteauroux, e neste período foi confrontado precocemente com a sexualidade dos pais, assistindo a atos de violência sexual do pai para com a mãe.
Para João Veloso, psicólogo do Observatório do Trauma da Universidade de Coimbra, não há dúvidas de que a partir do momento em que há uma demonstração clínica, como aquela que existiu no Tribunal de Avignon, então o “enquadramento do crime tem de ser diferente”. “Se nós dizemos que uma pessoa tem uma doença, então não podemos responsabilizar tudo na pessoa, mas temos de a enquadrar na sua própria doença”, acrescenta.
Explica ainda que este elemento da perversão, adquirido e colocado em prática por Dominique Pelicot, é “uma das coisas que muitas vezes está associada à patologia que se formou atrás, durante o desenvolvimento”. “Com naturalidade, vamos pensar que o homem tinha um quadro patológico instalado e que em função disso desenvolveu estes comportamentos. Isso servirá como atenuante clínico, mas não tão facilmente como atenuante judicial ou do julgamento”, considera. De facto, como se veio a provar com a leitura do veredito, este fator não serviu de atenuante à pena de Dominique, já que enfrenta o máximo de tempo que poderia passar na prisão de acordo com o crime de que estava acusado, violação agravada: 20 anos.
O psicólogo nota ainda que as pessoas que vivenciariam determinados traumas na sua infância “têm uma maior propensão para repetir comportamentos ou para passar por situações similares”. Isto porque “nos seus mecanismos de comportamento, isto aparece como um aspeto regulador” e, “tendencialmente porque esta pessoa tinha estes comportamentos porque isso aliviava algum do seu sofrimento”.
João Veloso aproveita ainda para desmistificar a questão da, assim apresentada em tribunal, “vida dupla”. Para o especialista, Dominique Pelicot não conseguia gerir estas duas vidas paralelas — aquela que o trauma afetava e a que não — e por isso é que organizava as violações da mulher.
“Um assassino não está sempre a matar, também almoça, também janta, também gosta de alguém, isto não são duas vidas, isto é só uma vida”, destaca, lembrando que o agressor tinha esquemas complexos, diários, para levar a cabo os abusos e partilhá-los online. “Mesmo altamente perturbado, era funcional e conseguia levar uma vida normal, e por isso é que não tem de ser internado numa estrutura hospitalar, mas vai cumprir pena numa cadeia”.
História da família Pelicot “alterou-se e o bom passou a ser mau”. Filhos e netos vão viver com a incerteza de mais abusos
Dominique Pelicot foi indiciado pelo Ministério Público para cumprir 20 anos de prisão, a pena máxima em França para crimes sexuais. Era o pedido de condenação esperado dado que confessou os crimes pelos quais foi acusado no momento em que a polícia o confrontou com os ficheiros que registavam os abusos à mulher. E pelos quais acabou condenado.
Nunca colocou em causa o seu papel de organizador do esquema, mas acabou por elevar-se a um estatuto de superioridade moral em relação a outros co-arguidos em tribunal, principalmente em relação aos que optaram por linhas argumentativas de defesa que apontavam para o desconhecimento que tinham, à altura da deslocação à casa em Mazan, de que Gisèle não tinha dado a sua autorização anterior para que o ato sexual decorresse — falam num jogo sexual que lhes tinha sido comunicado em que a mulher estar a dormir faria parte da fantasia da própria com o marido.
A forma acérrima como confessou tudo o que fez à mulher e como, no seu último depoimento em tribunal pediu para ser colocado atrás das grades por 20 anos, desejo que se cumpriu, contrasta com a também apaixonada forma como defendeu nos últimos quatro meses em tribunal que nunca tocou em qualquer dos filhos ou netos.
A sua filha, que utiliza o pseudónimo Caroline Darian, vive assombrada pela incerteza de ter sido abusada sexualmente pelo próprio pai, escreveu até um livro a partilhar a sua experiência. Como certeza tem apenas as fotografias, tiradas por aquele que agora considera ser apenas seu progenitor, arquivadas numa pasta com o título “Ao pé da minha filha nua”, que lhe foram mostradas pela polícia francesa em que surge semi-nua e nas quais teve dificuldade, perante o choque, de se reconhecer num primeiro momento.
Dominique Pelicot nega categoricamente alguma vez ter abusado sexualmente da filha. Está, no entanto, acusado do crime de violação da privacidade, já que captou e partilhou imagens dela, mas também das duas cunhadas, que contêm nudez, sem o seu consentimento.
https://observador.pt/2024/11/11/de-papa-a-progenitor-as-revelacoes-da-filha-de-gisele-pelicot-que-vive-sem-saber-se-foi-abusada-sexualmente-pelo-pai/
“Há uma série de estudos que nos dizem que quando há fotografias é porque existem comportamentos, senão porque é que existiam fotografias?”, admite o psicólogo João Veloso ao Observador, que destaca a “visão demasiadamente alargada” do que é ou não abuso por parte de Dominique “por causa das experiências” da infância e adolescência.
“No passado, ele não pode transformar todos os eventos que teve em abusos, porque senão não tinha conseguido sobreviver”, afirma o especialista em trauma que indica que é provável que o agressor possa ter definido na sua cabeça, por exemplo, que abuso é “só quando há penetração”. “Então, tudo o que ele fez que está definido à volta disso, desde que não tivesse existido penetração, ele iria sempre considerar de uma forma quase cega que não foi um abuso”, descreve, notando que tem tudo a ver como a forma como este homem “conceptualiza o abuso”.
Já em relação à forma como, tanto esta filha, como a restante família, podem vir a recuperar do que se passou nos últimos quase 15 anos — desde que foram revelados os abusos — João Veloso aponta para a “perda de continuidade na vida” de todas estas pessoas, entre filhos, netos e a própria Gisèle que é a principal vítima do caso. “Colocaram em causa uma narrativa que foi estrutural para o crescimento deles e quebraram laços com determinadas pessoas e momentos da sua vida e vão ter, tendencialmente, um risco maior de ter sintomatologia na área da tristeza e da ansiedade”, assegura.
“Tinham uma história para trás e esta história alterou-se: O bom passou a ser mau”, acrescenta, alertando para o abalo que este tipo de revelação provoca nos modelos com que construíram parte da sua identidade — o modelo da relação entre pai e mãe e da sua própria relação com o pai, principalmente.
João Veloso coloca mesmo a dúvida: “Será que de cada vez que estejam ao pé de alguém bem disposto como o pai, vão manter o elemento de desconfiança, porque o seu pai, uma figura referencial, tinha essas características, mas na realidade era uma pessoa perturbada e que não tinha esses princípios e esses valores.”
Apesar da dura realidade que apresenta este caso, o especialista nota que “existem hoje modelos terapêuticos orientados para este tipo de situações traumáticas, de evento adverso, que têm resultados clínicos muito importantes e muito próximos da cura”, até mesmo para a própria vítima. Admite que “não limpam a memória”, mas que ensinam “a lidar e a integrar as experiências naquilo que é possível integrar”.
“Obrigada, Gisèle!”, agradeceram as feministas por todo o mundo à mulher de 71 anos
A intenção de Gisèle Pelicot não foi, de qualquer maneira, deixar cair no esquecimento o que aconteceu. Podia ter optado por um julgamento à porta fechada e por se resguardar da atenção mediática esperada para um caso de violação com esta dimensão, mas escolheu fazer o contrário daquilo que os “seus agressores quereriam” e dar a cara. Afinal de contas, como disse várias vezes, “são eles que devem ter vergonha de mostrar a cara”.
E foi neste cenário que o julgamento avançou: em todas as sessões Gisèle chegava ao tribunal em Avignon de cara destapada, ladeada dos advogados uma vezes, noutras pelos filhos, mas sempre de cabeça erguida, na maioria dos dias, a sorrir e à medida que os quatro meses avançavam com cada vez mais apoio de mulheres ativistas que se reuniam à porta da sala de audiências para lhe gritar palavras de força e a mostrar cartazes em que se lia, por exemplo: “Quem dorme, não dá consentimento” ou “Obrigada, Gisèle”.
O movimento que se criou à volta das sessões culminou esta quinta-feira numa multidão à espera que Gisèle Pelicot deixasse a sala de tribunal após a leitura da sentença. Dezenas e dezenas de pessoas a demonstrar a gratidão pela decisão da vítima que garantiu, em declarações aos jornalistas à porta do tribunal, que “nunca se arrependeu” de ter tornado o julgamento público.
https://www.youtube.com/shorts/611HlgRP0og
As ativistas agradeceram-lhe pela coragem de dar a cara por um crime que, como descreve ao Observador Ana Leonor Marciano, jurista da UMAR, “normalmente as vítimas tendem a esconder por estarem precisamente a expor a sua intimidade quando avançam para público”. “É um lugar muito desconfortável de se estar, tendo em conta a especificidade do crime”, acrescenta.
“Trazer a público a sua realidade, é de facto um ato de coragem muito grande e que visa repor a sua dignidade mais profunda, bem como de dar um exemplo para as outras mulheres como uma forma de combater este crime hediondo”, saúda a jurista do movimento que se mostra cética em relação ao impacto que o caso, que considera ser um dos mais graves das últimas décadas, teve em Portugal, notando a escassez de debates sobre o caso por cá. “As notícias vieram a público, mas não houve um grande insurgir sobre isto”, lamenta, lembrando que a reação nacional à “violência entre quatro paredes ainda é algo muito enraizado na nossa sociedade”, sendo preciso “muito tempo para se conseguir alterar este pensamento”.
A coragem de Gisèle inspirou milhares de mulheres a sair às ruas e a exibir o seu ativismo nas mais variadas formas — desde manifestações por toda a França, até à arte urbana — com destaque para os graffitis feitos em Avignon e Mazan — com representações da mulher que saiu da sombra para lutar contra a cultura da violação e que agora ficará imortalizada nas ruas das duas cidades que assistiram ao caso.
Também para Daniel Cotrim, psicólogo na APAV, é ainda cedo para saber se a exposição pública do caso terá efeitos palpáveis na sociedade. “A lição mais importante que podemos tirar de tudo isto é a frase importante que ela utiliza de que a vergonha tem de ser a das pessoas agressoras”, assegura, lembrando que as vítimas, embora tenham esse direito, “não devem esconder-se nem ter vergonha porque não estavam a pedir para que aquilo que acontecesse”.
O responsável pela área da Violência de Género na associação entende que “as mudanças de mentalidade dão-se devagar” e que “às vezes são preciso momentos mais catastróficos e de maior crise para se perceber que esta realidade acontece e que pode acontecer bem perto de nós”. Para o especialista, é preciso “desconstruir a ideia de que um bom homem e pai de família não viola”, bem como desconstruir a ideia de que “as mulheres não são violadas”. Além disso, garante que a ideia de consentimento precisa de ser “assente”, já que casos como este demonstram que para uma fatia considerável de homens o conceito se esbate facilmente.