Há um ano a representante da Casa Branca para o comércio e negócios chegava a Lisboa para alertar o Governo do perigo de comprar equipamentos tecnológicos de “países autoritários” para “infraestruturas críticas” portuguesas. Em declarações ao jornal Público, Sarah Morgenthau dramatizava o discurso e falava em “riscos para a segurança” de Portugal. A viagem aconteceu em dezembro do ano passado, quando estava a decorrer um concurso público para a compra de um novo scanner para o porto de Lisboa, que tinha entre as opções a empresa chinesa Nuctech.
Apesar dos alertas da Casa Branca, Portugal tem scanners da Nuctech em outros portos do país há já cinco anos.
https://observador.pt/2023/12/17/eua-nao-querem-scanners-chineses-no-porto-de-lisboa-e-um-risco-a-seguranca-nacional-diz-administracao-biden/
Um ano depois, o concurso para os scanners no porto de Lisboa, ganho pela Protilis (mas que no contrato não indica a solução tecnológica), parece não estar ainda implementado. O Ministério das Finanças, que gere a comunicação da Autoridade Tributária e Aduaneira (que adjudica o concurso), não deu qualquer resposta quando contactada pelo Observador. O concurso para o porto de Lisboa tinha um valor base de 3,03 milhões de euros.
Num outro concurso, segundo pesquisa no portal base, para a aquisição e manutenção de dois destes equipamentos para o porto de Setúbal e para o porto de Leixões, no valor de 2,618 milhões de euros em 2019, foi a Protilis Portugal a ganhar. No site da Protilis Portugal, podemos ler que a empresa é “autorizada pelo Ministério da Defesa Nacional a exercer a atividade de indústria e comércio de bens e tecnologias militares” e já venceu centenas de concursos públicos (240 de acordo com a base de dados do Governo) para os mais variados tipos de equipamentos.
Mas em setembro de 2024, o Governo lançou um segundo concurso público, não para comprar scanners ou qualquer tipo de equipamento para os portos de Setúbal e Leixões, mas sim para a “aquisição de serviços de assistência técnica a equipamentos de inspeção não intrusivos de contentores”. E é neste concurso público, consultado na Autoridade Tributária e Aduaneira, que o Governo é obrigado a deixar escrito que os serviços de assistência que pretende adquirir abrange “dois lotes”: para o Porto de Leixões e para o Porto de Setúbal, os dois com scanners da Nuctech.
Ou seja, já depois da polémica do ano passado, o Governo quer manter – e até assegurar a manutenção – dos scanners Nuctech a operar em portos portugueses.
Há um ano, a Casa Branca avisava que comprar tecnologia a empresas como a Nuctech, uma “fabricante apoiada pela República Popular da China”, podia “ser danoso”, uma vez que permitiria o acesso de Pequim a informação sobre “contentores e embalagens que estão ligadas a base de dados da marinha mercante” e a informação sobre passageiros, como “passaportes e impressões digitais”.
Scanners da Nuctech tiveram “luz verde” do Gabinete Nacional de Segurança
Fonte próxima do processo explica ao Observador que a aquisição de scanners chineses foi alvo de uma avaliação do Gabinete Nacional de Segurança (foi, por exemplo, a mesma entidade que recomendou ao Governo excluir equipamentos chineses das redes de telecomunicações – o 5G). O relatório é classificado e o Observador não teve acesso. Porém, a mesma fonte recorda que o Gabinete Nacional de Segurança acabou por dar luz verde à compra de equipamentos chineses para as alfândegas portuguesas, desde que fossem adotadas medidas de segurança para minimizar os riscos.
Além disso, equipamentos da Nuctech são utilizados por 25 dos 27 estados membros da União Europeia (as exceções são a Estónia e a Lituânia). Em 2022, o levantamento da Associated Press apontava para 26 estados membros, uma vez que só em 2024 a Estónia passou a considerar que a tecnologia chinesa como uma “ameaça crescente”
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A fonte, que acompanhou de perto a negociação para trazer os scanners da Nuctech para Portugal, assegura ao Observador que o tema foi discutido a nível europeu e a larga maioria dos países não planeava impor qualquer restrição a este tipo de equipamentos chineses, e mesmo aqueles que o tinham feito no 5G, consideravam que “o risco não era comparável”.
https://observador.pt/especiais/uma-decisao-tecnica-ou-de-geopolitica-13-perguntas-sobre-a-deliberacao-que-pode-afastar-a-huawei-do-5g/
Quanto à pressão dos Estados Unidos, recorda que os alertas da Casa Branca vinham, não da defesa, mas do departamento do comércio e negócios – ou seja, que se tinha tratado de uma forma de “pressão” sobre o Governo na hora de fechar o negócio.
“Uns senhores em Pequim poderão saber tudo o que se move dentro da Europa”
A não utilização de tecnologia chinesa em infraestruturas críticas em Portugal tem sido uma bandeira da Iniciativa Liberal.
Em declarações ao Observador, o deputado Rodrigo Saraiva sublinha que a Lei de Inteligência Nacional da China pode obrigar uma empresa – mesmo que não seja estatal ou uma empresa satélite do Partido Comunista Chinês – a ceder informação, ou a “apoiar, ajudar e cooperar com o Estado em matéria de inteligência nacional”.
Está na lei, não é uma questão de ‘achismo’. uns senhores num edifício governamental em Pequim poderão controlar e saber tudo o que se move dentro da Europa.
Apesar de o concurso público ter sido aberto há mais de um ano, o liberal estranha que não haja “sequer a confirmação de que o contrato está assinado”. E recorda o que aconteceu noutros países europeus, como a Estónia, que mesmo apesar dos critérios “fortíssimos de segurança” veio a descobrir que os scanners da Nuctech estavam a “emitir sinal” e a transmitir informações. Por estes contentores, nas alfândegas dos países europeus “passa material militar, por exemplo”, diz Rodrigo Saraiva.
A Iniciativa Liberal trouxe esta questão, não apenas na altura em que a Nuctech estava a ser apontada como vencedora do concurso público para o porto de Lisboa (há um ano), mas também durante a discussão do Orçamento do Estado. Em novembro, questionada sobre o tema, a secretária de estado dos Assuntos Fiscais, Cláudia Reis Duarte, confessou não saber se o “contrato (para o porto de Lisboa) já tinha sido celebrado e objeto de adjudicação” e quanto à segurança do equipamento “estes equipamentos não permitem qualquer exfiltração de dados e portanto, nessa medida, a segurança estará assegurada“.
Câmara de Comércio e Indústria luso-chinesa queixa-se de “preconceito”
A Câmara de Comércio e Indústria luso-chinesa admite que as acusações de que empresas como a Nuctech são alvo, pela proximidade que têm do regime chinês – a empresa é parcialmente estatal e entre os ex-diretores-gerais conta-se o filho do antigo presidente da China Hu Jintao – “prejudicam o ambiente e a relação” entre Portugal e a China.
Ao Observador, Bernardo Mendia, secretário-geral da Câmara luso-chinesa, explica que prejudica o ambiente porque “passa para a opinião pública” uma ideia que que acaba “por ficar” mesmo que “não corresponda à verdade” e torna cada vez mais evidente o “preconceito” na sociedade portuguesa com os bens que vêm da China.
A Câmara de Comércio e Indústria luso-chinesa alerta ainda para as mudanças que o Governo se prepara para fazer com a proposta de lei de autorização legislativa, que quer aprovar o novo regime jurídico da Cibersegurança. Numa comunicação interna aos associados, a Câmara diz que “acolhe com bom grado” a introdução de requisitos mais exigentes de cibersegurança, mas regista “com preocupação” que a proposta de lei inclua critérios “não-técnicos” que abrem a porta à “restrição de fornecedores tecnológicos com base no seu país de origem“.
Temos de nos lembrar que estamos num Estado de Direito, não podemos fazer estas acusações infundadas. Levantar boatos sem apresentar provas é uma prática recorrente, que justifica práticas protecionistas – que prejudicam o consumidor.
Os Estados Unidos não são os únicos alvos das críticas da Câmara de Comércio e Indústria luso-chinesa. Também os “decisores políticos portugueses e europeus”, como Paulo Rangel, Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, que é acusado de contribuir para a narrativa que “coloca os bons de um lado e os maus do outro”. Ainda nesta semana, no dia 17 de dezembro, Paulo Rangel tinha defendido a criação de “comunidade atlântica da Antártida até ao Ártico” para enfrentar peso da China.
A relação complicada entre a Nuctech e a Comissão Europeia
Em abril deste ano, os escritórios da empresa chinesa nos Países Baixos e na Polónia foram alvo de buscas e apreensões por parte da Comissão Europeia, sob a suspeita de receber subsídios de Pequim que permitiria à Nuctech apresentar propostas impossíveis de recusar em concursos públicos por toda a Europa, colocando assim a concorrência em desvantagem.
As alegações da Comissão Europeia foram sempre rejeitadas pela Nuctech. A empresa procurou suspender a investigação do executivo comunitário junto do Tribunal Geral da União Europeia, assegurando que “não recebeu qualquer subsídio do estado chinês” e que iria continuar a defender “a sua reputação como operadora comercial independente“.
Mas o Tribunal Geral da União Europeia acabou por dar razão ao executivo de Ursula von der Leyen, considerando que a Comissão pode investigar ou pedir informações a todas as empresas que trabalhem na União Europeia.
Ainda assim, a investigação não impediu a Nuctech de voltar a vencer contratos públicos na Europa. Apenas em setembro, a empresa chinesa venceu duas licitações para fornecer scanners a Itália, no valor de 15 milhões de euros, de acordo com documentos a que o South China Morning Post teve acesso.
Há no entanto países europeus a ir em sentido contrário. Na Polónia, o aeroporto de Varsóvia vai remover os scanners criados pela empresa chinesa, por preocupações relacionadas com a segurança desses mesmos equipamentos.
https://observador.pt/programas/onde-para-o-caso/apesar-dos-avisos-dos-estados-unidos-portugal-quer-manter-scanners-chineses-da-nuctech/