“Rendam-se! A Ucrânia vai abrigar-vos, alimentar-vos e aquecer-vos!”. As palavras são ditas em coreano num vídeo das autoridades ucranianas que visa os soldados de Pyongyang a combater ao lado das tropas russas em Kursk e procura afastá-los dos combates. Serão mais de 10 mil militares norte-coreanos, enviados por Kim Jong-un em outubro, e já entraram em confrontos na província russa de Kursk, ocupada pelas tropas da Ucrânia.
É a primeira vez que o exército da República Popular Democrática da Coreia (RPDC, a designação oficial da Coreia da Norte) intervém num conflito externo. Para a Rússia, a sua extensa preparação militar é uma ajuda bem-vinda na ofensiva contra a Ucrânia, quase estagnada há vários meses. Para a Coreia do Norte, é uma oportunidade de treino para as suas tropas. Porém, além dos benefícios mútuos, esta parceria estará a enfrentar uma série de desafios: barreiras de linguagem, fogo amigo e questões de hierarquia.
A Ucrânia quer aproveitar estes obstáculos para promover a deserção de soldados norte-coreanos. Esse é o objetivo da campanha “Eu quero viver”, que inclui o vídeo com um apelo direto à rendição. Ainda antes de este vídeo ter sido publicado, a televisão pública ucraniana já tinha relatado a deserção de 18 soldados norte-coreanos, citando fontes das secretas ucranianas. “É uma oportunidade tremenda para estes esforços ucranianos, porque os falhanços de Kim Jong-un minam a esperança até da sua elite”, argumenta Bruce Bennett, investigador no think tank norte-americano RAND, ao Observador.
Exército Popular da Coreia: o tamanho desproporcional, a herança soviética e o poder nuclear
“A primeira coisa a assinalar quando falamos da Coreia do Norte é que fazem um trabalho excelente a esconder informação sobre o seu exército e outras capacidades. Por isso, não temos respostas absolutas”, ressalva Bruce Bennett. Ainda assim, as autoridades sul-coreanas e observatórios internacionais recolheram informações suficientes para traçar um perfil das forças armadas de Pyongyang, o Exército Popular da Coreia (EPC). Com 1,3 milhões de soldados ativos, o EPC é o quinto maior do mundo. É suplantado apenas pelos da China, Índia, Estados Unidos e Rússia. Contudo, é preciso notar que três destes quatro países tem uma população que é mais de 10 vezes maior que a RPDC, o que ilustra o seu tamanho em termos de proporção para o número de habitantes.
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A estes ativos somam-se 6,3 milhões de reservistas, segundo os números citados pela Reuters — o que representa quase 25% da população. A dimensão das forças armadas justifica-se com o serviço militar obrigatório, que é de cinco anos para todas as mulheres e de 3 a 12 anos para os homens entre os 17 e os 30 anos. Estes soldados dividem-se em cinco ramos — Marinha, Força Aérea, Exército, Força Estratégica e Força de Operações Especiais –, todos eles com uma cadeia de comando muito clara e hierarquizada.
Os números elevados de pessoal repetem-se nas capacidades materiais. Em 2022, o EPC somava quase 7 mil tanques e veículos blindados, 400 jatos de combate, 80 bombardeiros e 200 aviões de transporte, 470 navios de superfície e 70 submarinos. Contudo, a maior parte deste arsenal data da era soviética e encontra-se desatualizado. Além disso, este armamento só é utilizado nas imediações dos 248 quilómetros de zona desmilitarizada na fronteira com a Coreia do Sul.
Com um exército parado no tempo, Pyongyang procura apostar na modernização e nas “capacidades assimétricas”. Isso inclui o desenvolvimento de armas químicas, o treino de 6.800 profissionais para ataques digitais e, mais relevante, o desenvolvimento de armas nucleares — a Coreia do Norte é uma de apenas nove potências nucleares no mundo. Considerando as capacidades, pessoais e materiais, não é surpreendente que os gastos com as Forças Armadas cheguem a representar 25% do PIB anual de Pyongyang. Esta dimensão ajuda a explicar a sua presença em solo russo.
A relação mutuamente benéfica entre Pyongyang e Moscovo
A assinatura do tratado de parceria estratégica entre a Rússia e a Coreia do Norte, em junho de 2024, abriu caminho para a chegada de tropas norte-coreanas a solo russo. A Rússia tem muito a ganhar com esta chegada: “Munições e mão de obra necessárias para aquilo que se tornou um guerra de atrito com perdas impressionantes num conflito de quase três anos”, escreve Darcie Draudt-Véjares, especialista na Coreia do Norte no think tank Carnegie Endowment for International Peace.
Para além das necessidades militares de Moscovo relativas à guerra na Ucrânia, a Coreia do Norte também sai beneficiada. Edward Howell, investigador sobre a Coreia no think tank Chatham House, identifica outros três motivos: a fragilidade económica do regime de Kim Jong-un; uma relação entre duas potências nucleares que ponha em causa o sistema de organizações internacionais de segurança e uma tentativa de Pyongyang desenvolver os seus programas internos de armas nucleares e mísseis.
A crise económica que a Coreia do Norte enfrenta poderia tornar-se um motivo para a população se virar contra o regime. A venda de munições e armamento — que Pyongyang tem em grandes quantidades — era um negócio “fácil” para Kim Jong-un obter capital, com o qual pode “melhorar a vida das suas pessoas, especialmente das elites, reduzindo o descontentamento”, destaca Bruce Bennett, num artigo publicado no início de novembro. Este negócio rapidamente evoluiu para a venda de mão-de-obra, que culminou com botas norte-coreanas no terreno.
Mas Pyongyang não quer uma relação meramente militar, argumenta Fyodor Tertitskiy, investigador na Kookmin University em Seoul. “A Coreia do Norte está a fortalecer laços com a Rússia numa série de áreas diferentes, desde o comércio a turismo, intercâmbios (incluindo de crianças), enviar soldados e trabalhadores para a Rússia”, elenca o especialista. Estes especialistas salientam outra vantagem para a Coreia do Norte: testar as suas tropas num cenário real de guerra.
O Presidente Volodymyr Zelensky já tinha alertado para estes testes no final de outubro. “O líder norte-coreano, tal como Putin, não se preocupa com a vida das pessoas. Mas esta prática é importante para o seu Exército”, apontou à data. Agora, mais de um mês depois, o chefe de Estado adiantou que os soldados norte-coreanos começaram a ser utilizados em “número significativo em Kursk”. “Temos informações que sugerem que a sua utilização se pode estender a outras partes da linha da frente”, declarou Zelensky no sábado. Esta entrada em cena da Coreia do Norte poderá, contudo, estar a ser dificultada por uma série de entraves que não foram impostos pela resistência ucraniana, mas por falhas internas.
As falhas do EPC. Dificuldades de comunicação, erros de organização e fogo amigo
Dos milhares de soldados norte-coreanos que estão em Kursk, pelo menos 3 mil farão parte do ramo das operações especiais do EPC, avançam autoridades sul coreanas. “Há cerca de 20 mil norte-coreanos nas operações especiais e são muito diversos: uns são muito capazes, outros são mais como infantaria”, compara Bruce Bennett ao Observador. O investigador destaca que não sabe que tipo de treino têm estas tropas, mas arrisca que será de infantaria. Os restantes 7 a 10 mil serão infantaria “normal”. “Se isso for verdade, estão pouco treinados, pouco alimentados e sem cuidados médicos adequados”, acrescenta, descrevendo estes milhares de soldados como “carne para canhão“.
A expressão foi igualmente utilizada por Kim Yong-hyun em outubro, quando ainda era ministro da Defesa da Coreia do Sul, para se referir ao facto de os norte-coreanos estarem a utilizar uniformes russos. “Putin quer que pareça que as forças russas, e não forças norte-coreanas, é que estão a resolver o problema da invasão ucraniana”, interpretou ainda Bruce Bennett no seu artigo. Ao Observador, relata que as forças russas e norte-coreanas estarão a combater misturadas em organizações de nível inferior, onde, independentemente das “parecenças”, têm tido dificuldades na cooperação.
O primeiro obstáculo é o da língua. São poucos os soldados rasos norte-coreanos que falam russo e ainda menos os russos que falam coreano. Em mensagens intercetadas pelas autoridades ucranianas, citadas pela NBC em novembro, um soldado russo afirma que “não sabe o que fazer com eles”, referindo-se ao “batalhão K”. O exército russo estará a ensinar aos soldados de Pyongyang algum vocabulário militar, mas este não será suficiente. O mesmo canal nota que tradutores podiam ajudar, mas não são uma possibilidade num cenário real de guerra, que “requer comunicações específicas constantes”.
Esta comunicação constante traduz-se também num segundo desafio: o da hierarquização rígida do EPC. “A sua estrutura de comando está desenhada para prevenir um golpe de Estado, não para eficácia”, considera Fyodor Tertitskiy. Segundo este sistema, todas as decisões precisam da aprovação de representantes de vários organismos, o que se revela “complicado” na frente de batalha. Os especialista sugere que este sistema pode ter sido adaptado à realidade da guerra na Ucrânia, mas deixa claro que a extensa preparação militar que o EPC recebe na Coreia do Norte não é sustentável em batalha.
Estas dificuldades operacionais já se terão traduzido em mortes no Exército russo, às mãos de soldados norte-coreanos. A informação foi avançada pelos serviços de informação do Exército ucraniano, no passado sábado. “Soldados norte-coreanos abriram ‘fogo amigo’ sobre veículos do batalhão de ‘Akhmat’. O resultado foram oito ‘apoiantes de Kadyrov’ mortos“, pode ler-se no comunicado partilhado pelas secretas. Tal como se entende pela referência a Ramzan Kadyrov (líder da Chechénia), o batalhão Akhmat é um ramo das forças russas composto por soldados chechenos. No mesmo comunicado, as autoridades ucranianas relatam a morte de dezenas de soldados norte-coreanos.
“Os norte-coreanos podem acabar por ser menos uma ajuda e mais um obstáculo”, remata Sydney Seiler, responsável do programa da Coreia no Center for Strategic and International Studies, à NBC. Neste caso, a sua utilidade passaria principalmente por tarefas menores — “cavar latrinas, guardar cruzamentos, guardar edifícios” –, libertando soldados russos para combater na frente de batalha. Estas posições, somadas ao pouco treino que receberam dos pares russos, tornariam os soldados norte-coreanos em alvos fáceis para Kiev.
“Com os soldados norte-coreanos a sofrerem baixas, a Rússia não vai pagar por eles a Kim Jong-un. Se Kim quiser manter o fluxo de dinheiro que é tão importante para a Coreia do Norte, é provável que tenha de enviar substitutos”, analisa Bruce Bennett ao Observador, especulando que Pyongyang estará disponível para enviar até 100 mil soldados, o que poderia enfurecer as cúpulas do regime. Tendo em conta esta situação, a Ucrânia tenta utilizar todos estes constrangimentos a seu favor.
“Barracas confortáveis, três refeições quentes por dia e cuidados médicos”. Como Kiev apela à deserção
A campanha ucraniana “Eu quero viver” foi criada em 2022, com o objetivo de incentivar soldados russos a desertar, através de uma linha telefónica disponível 24 horas. Em troca, a Ucrânia garantia-lhes alimentação, abrigo e tratamento digno num campo de prisioneiros. Segundo os dados ucranianos, desde a sua criação, 350 soldados russos já aproveitaram o projeto. No dia 23 de outubro, a campanha foi relançada, desta vez em coreano.
No vídeo partilhado, Kiev apela aos soldados do EPC que “não morram sem sentido em solo estrangeiro”. O vídeo mostra uma série de imagens, identificadas como campos onde prisioneiros “aguardam pelo fim da guerra em boas condições: barracas confortáveis, três refeições quentes por dia e cuidados médicos”. A mesma voz garante, sempre em coreano, que os campos aceitam “soldados de qualquer nacionalidade, religião ou ideologia”. A campanha inclui ainda uma série de panfletos, que são distribuídos por voluntários.
“Nem todos querem lutar. Conhecemos bem as condições de vida na Coreia do Norte. Portanto, muitos podem ver isto como uma chance de escapar ao regime e ir para outro país”, argumenta um destes voluntários, Vitaliy Matvienko, à Euronews. A aposta ucraniana poderá não ser assim tão descabida. Lee Min-bok, um desertor norte-coreano que mora em Seoul, sublinha ao New York Times que mais soldados devem desertar quanto mais tempo passarem na Ucrânia, pois é muito difícil exercer o mesmo nível de controlo no campo de batalha.
O jornal norte-americano estima que muitos dos soldados norte-coreanos em Kursk tenham nascido e crescido durante a profunda crise dos anos 90 — logo após a queda da União Soviética, que afetou a economia da RPDC. Agora, 30 anos depois, o país enfrenta nova crise na sequência da pandemia de Covid-19. A presença na Ucrânia é, para muitos, a primeira vez que estão no estrangeiro. E campanhas como esta poderão ser o empurrão de que precisam para sair do país. “Há uma razão simples para a Coreia do Norte nunca ter enviado unidades militares para o estrangeiro: o regime teme que soldados do país isolado possam apanhar ideias ‘erradas’“, argumenta o investigador Fyodor Tertitskiy. E acrescenta que o cenário não é rebuscado: em 1992, um grupo de comandantes norte-coreanos tentou um golpe de Estado, depois de ter estudado em Moscovo.
Porém, Kim Jong-un poderá estar prevenido para esta possibilidade, fazendo várias famílias como reféns. “Se não estão como reféns, pode ter ameaçado consequências de deserção contra as famílias”, sugere ao Kyiv Independent John Foreman, antigo adido militar do Reino Unido em Moscovo. Além disso, “a carne para canhão” poderá ser apenas uma parte das tropas que Pyongyang estará disposto a fornecer, considera o investigador Bennett ao Observador. As forças que verdadeiramente podem fazer a diferença — as forças especiais de elite — estarão a receber treino em solo russo, longe da linha frente. Por agora, as tropas norte-coreanas “não devem provocar nenhum grande efeito”. Mas a entrada em cena das forças de elite “poderia ser perigoso”, compara.
Ainda assim, Edward Howell argumenta que a campanha de propaganda ucraniana deve ser o caminho a seguir para destruir o regime de Kim Jong-un a partir de dentro. Os países ocidentais, em conjunto com a Coreia do Sul “deviam reconhecer que o ‘problema’ não está limitado à proliferação nuclear” e “promover mudanças de atitude das pessoas norte-coreanas relativamente a Kim Jong-Un”. Ou seja, a presença de soldados norte-coreanos em solo russo pode ser uma porta aberta que o Ocidente deve saber aproveitar para mudanças a longo prazo.