Quando regressou a casa, em setembro de 2020, depois de um inusitado enfarte do miocárdio, Ana Luísa Neves questionou tudo e toda a vida. Em plena pandemia, tão pouco podia contar com a companhia dos pais, porque os contactos eram desaconselhados. Aos 34 anos, mais de metade da vida diagnosticada como hipertensa – atribuído à genética – sentiu que a vida lhe estava a dar “uma segunda oportunidade”. E afinal, havia uma razão para as anomalias cardiovasculares que se atravessavam no seu caminho: uma doença hereditária, trombofilia, que provoca oclusão vascular. Um dia, um desses trombos entupiu-lhe a artéria. Naquele setembro, teve aquilo que em linguagem corrente se chama um ataque cardíaco, e que ocorre quando uma das artérias do coração fica obstruída por um coágulo, fazendo com que uma parte do músculo cardíaco deixe de funcionar por falta de oxigénio e nutrientes.
Um ano antes casara com Miguel, planeavam ter filhos. E tiveram. Guilherme nasceu dois anos depois daquela ameaça, numa gravidez vigiada ao pormenor, sob um acompanhamento tripartido entre o serviço de Cardiologia do Hospital de Santo André (HSA), em Leiria, a Unidade de Trombose e Hemóstase do Serviço de Sangue e Medicina Transfusional do Centro Hospital Universitário de Coimbra (CHUC), e a Maternidade Bissaya Barreto.
Nessa altura já o pior passara, já Ana Luísa voltara a trabalhar como mediadora de seguros, já quase se esquecera dos dias em que o coração a obrigou a andar devagar, muito devagar, num passo lento entre a sua casa, a casa dos pais (onde acabou por fazer a recuperação), e o escritório de mediação de seguros que se preparava para gerir, ao leme do negócio da família. E foi essa a rede que apertou a malha o mais que pôde, qual seguro de vida em teto máximo para Ana Luísa. Volvidos quatro anos, vigia mais de perto o seu coração independente, coração que não comanda, sobretudo quando o pequeno Guilherme a assusta com as mazelas próprias da infância. Porque apesar do resultado negativo da análise, ao nascer, a adolescência pode revelar sinais dessa doença hereditária.
Numa família religiosa, todos acreditam que esta provação se transformou em bênção.
Manuel António das Neves
“Fui como uma sombra para a minha filha durante os primeiros tempos”
A 13 de setembro de 2020, seis meses depois do país entrar em confinamento pela primeira vez, à conta da pandemia por Covid-19, Manuel António das Neves recebeu uma chamada que o sobressaltou. Era a empregada de limpeza lá de casa, aflita, a ligar da urgência do Hospital Distrital de Pombal (onde a família mora), dando conta do seguinte: “A Ana sentiu-se mal e está lá dentro em observações”. Quando lá chegou, o pai de Ana Luísa encontrou o genro, Miguel Simões, numa altura em que ainda não se sabia a causa da súbita indisposição da filha. Não demorou muito para se descobrir que, afinal, era o coração. Viu-a entrar na ambulância, já medicada, seguiu-a de carro, até ao HSA, em Leiria, nos 25 km mais longos da sua vida. Lá, uma equipa de cardiologistas já esperava por ela. Seguiu-se um cateterismo (desobstrução da artéria) e uma semana de internamento. “Uma semana que eu não desejo a ninguém”, conta ao Observador Manuel António. “Naquela altura não havia visitas, não podíamos chegar ao pé dela, só a víamos em videochamada”.
Mas foi quando a filha regressou a casa que a família se viu dividida entre cumprir “as distâncias de segurança” e ajudar, de perto, na reabilitação.
Ana Luísa sempre trabalhou com o pai, na seguradora da família. Tinha ela 20 anos e ele 49 quando outro episódio de âmbito cérebro-cardiovascular abalou a vida da família: Manuel António sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC), numa repetição da história que vira acontecer com o pai, avô de Ana Luísa. “Por causa disso, achava-se que o facto de ela ser hipertensa era uma coisa hereditária, mas do meu lado”, explica Manuel António. Afinal, os exames depois do enfarte haveriam de concluir que a trombofilia (entretanto diagnosticada) era herdada da mãe.
Foi o pai a figura mais presente no processo de reabilitação de Ana Luísa. “Ela passava os dias comigo, em casa ou no escritório. Na verdade, eu fui quase uma sombra dela, durante aqueles primeiros tempos. Como o escritório é em minha casa, ela queria começar a fazer coisas de trabalho. Mas eu insistia sempre: vai descansar, vai dormir um pouco. Queria que ela recuperasse bem”, conta o pai.
Ausenda Fernandes
“Fazia-lhe a comida e deixava-a em cima do muro”
Quando Ana Luísa sofreu o enfarte, a mãe, Ausenda Fernandes, ainda trabalhava. Tem agora 67 anos, já se aposentou, mas na sua memória estão ainda bem presentes os dias agitados por que a família passou, e a correria a que ela própria se obrigava. Era funcionária pública na Conservatória do Registo Civil de Pombal, entrava cedo, e não raras vezes cozinhava refeições antes. “Nos primeiros dias deixava-lhe o almoço em cima do muro, à porta de casa. Como estávamos naquela situação da pandemia, e ela tinha de ter cuidados redobrados, tínhamos receio de nos aproximarmos…”, recorda Ausenda. Os dias foram passando, a filha foi recuperando, e então concluíram que o melhor seria passar o dia em casa dos pais, porque lá estava o pai e assim estaria mais acompanhada.
“Preocupava-me muito não poder estar mais com ela, como eu gostaria”, afirma Ausenda, que só há quatro anos descobriu ser portadora do gene que, afinal, passou à filha, e que origina a trombofilia. Tem outro filho, mais novo, mas que escapou imune à doença hereditária.
Ausenda é acompanhada em consulta de cardiologia desde os 49 anos, quando descobriu uma arritmia. Os sucessivos eletrocardiogramas não detetaram o que era “aquela impressão que sentia, como se deixasse de respirar”. Só um ecocardiograma, um holter [exame que regista o funcionamento do coração durante 24 horas] e uma prova de esforço o confirmaram, depois de um dia “muito stressante”, que a levou a entrar na urgência hospitalar com 160 pulsações por minuto.
De modo que, quando se confirmou o enfarte da filha, já estava familiarizada com a linguagem das doenças cardíacas, mas não preparada “para receber aquela notícia: uma menina tão nova, medicada para a tensão arterial… nem queria acreditar”.
Passado o susto, a equipa de cardiologia do HSA que acompanhou Ana Luísa queria saber a origem do enfarte. E recomendou exames a toda a família. Foi aí que Ausenda descobriu a trombofilia. Desde então é medicada, tal como a filha. “Admirei-me muito nunca ter tido problemas… nem nos partos”. Pensando bem, teve um aborto, na sua primeira gravidez, antes dos dois filhos.
Olhando para trás, a mãe de Ana Luísa espanta-se ainda hoje com a determinação da filha: “Ela teve muita coragem. Não sei onde é que ela foi buscar aquela coragem toda, porque mesmo no hospital nem sequer podíamos visitá-la. Depois em casa também não podíamos fazer grandes contactos”.
Ausenda recorda também a gravidez do neto Guilherme, que se seguiu. “Ela seguiu tudo à risca, tudo o que os médicos lhe diziam para fazer. Também acho que teve muita sorte com a equipa que a acompanhou”.
Miguel Simões
“O mundo desabou à nossa frente, mas conseguimos reerguê-lo”
Miguel e Ana Luísa casaram em 2019, depois de uma década de namoro. Estavam ainda em estado-de-graça quando o enfarte se atravessou na tranquilidade feliz dos dois. Naquele dia, enquanto seguia a ambulância que transportava a mulher a caminho do serviço de cardiologia de Leiria, já com suspeitas de enfarte, o jovem economista fazia contas à vida. “Tinha centenas de perguntas na cabeça, mas sobretudo porquê ela? Porquê nós? O mundo estava a desabar à nossa frente”, conta ao Observador, recuperando o que foram os dias que se seguiram ao regresso da mulher a casa. “Eu sempre tive o hábito de fazer um pouco de tudo, em casa. Mas naquela altura tinha a preocupação de fazer ainda mais, não só porque ela cansava-se muito, com esforços simples, mas também porque queria ajudá-la em tudo”.
Nos primeiros dias, ficou em teletrabalho. Depois a família optou pela solução da casa dos pais de Ana. Miguel deixava-a de manhã, trazia-a de volta à noite. Durante dois meses revezou-se com o sogro nas viagens até ao serviço de reabilitação cardíaca do HSA, antes de a mulher voltar a conduzir. Ligava-lhe a toda a hora. “Se ela não atendia ou não devolvia logo a chamada, ficava preocupado. Na verdade, ainda hoje fico”, admite. Afinal “está sempre lá o medo de voltar a acontecer”, mesmo sabendo que ambos mudaram tanto os hábitos, nomeadamente alimentares. “Passámos a fazer como ela aprendeu lá na reabilitação: comer de tudo com menos sal e com menos gordura”.
Entretanto, também a atividade física entrou na vida do casal. Inicialmente começaram com pequenas caminhadas, depois compraram equipamentos semelhantes aos que existem no serviço hospitalar e nos ginásios: uma passadeira e uma bicicleta.
Miguel encara o enfarte da mulher como “um obstáculo duradouro” que o casal tenta ainda hoje ultrapassar. “Sei que ela está estável, mas há sempre ali uma campainha, por exemplo, se a vejo mais cansada.”
Guilherme
"Deixou de mamar aos 11 meses, como se soubesse que era hora de voltar à medicação”
No dia em que o Observador encontrou a rede de Ana Luísa Neves, o pequeno Guilherme não fora à creche. Passou a noite anterior com febre, num quadro viral próprio da época e da idade. “Ele também é uma peça muito importante na minha rede”, explica a mãe. Sobressalta-se com cada febre, sobretudo a partir do momento em que o viu ter uma convulsão. Uma vez chegada à urgência do Hospital Pediátrico de Coimbra, é que soube do que se tratava. “Dizem-me que é normal, mas uma pessoa fica sempre com medo.”
Guilherme foi um bebé tão desejado quando acompanhado ainda na barriga da mãe. “Foi preciso parar a medicação que estava a tomar, para poder engravidar. Mas o acompanhamento médico foi excelente”, conta a mãe. Guilherme nasceu no dia 20 de julho de 2022, de parto natural, e logo foi submetido a exames de sangue, para que se pudesse saber se também ele herdara a trombofilia da mãe e da avó. “O exame deu negativo. Mas o que nos disseram foi que, quando ele tiver 16 anos, especialmente se praticar desporto, convém fazer a análise de novo, e perceber se se manifesta alguma coisa.”
“Quando descobrimos a gravidez, foi o Dr. Alexandre [médico cardiologista que acompanha Ana Luísa] a terceira pessoa a saber… tínhamos receio devido ao tal ajuste da medicação de que ele já me falara. Felizmente correu tudo bem”, conta. E, acrescenta: “Quando o Guilherme nasceu, eu sabia que poderia amamentar apenas cerca de um ano, para depois voltar à medicação habitual. É engraçado que o meu filho aos 11 meses deixou de querer mamar. Parecia que sabia ser aquele o momento. É uma verdadeira bênção este nosso menino”.
Alexandre Antunes
“A Ana foi uma doente muito cumpridora, conseguiu recuperar muito da sua função cardíaca”
O cardiologista Alexandre Antunes conheceu Ana Luísa já depois do procedimento de desobstrução da artéria, na consulta de reabilitação cardíaca, “depois do evento”. Impressionou-o “ser uma doente tão jovem, cujo único fator de risco parecia ser a hipertensão, identificada e medicada”. Passaram quatro anos, só há poucos meses acabou por lhe dar alta. “Não podemos guardar as pessoas para sempre no serviço, e nos casos em que é possível, encaminhamos o acompanhamento para os cuidados de saúde primários [agrupamentos de centros de saúde e unidades de saúde familiar]”, explica o médico responsável pelo serviço de reabilitação cardíaca do HSA. Ainda assim, desde a primeira hora que facultou o número de contacto direto e pessoal à doente, como faz habitualmente. Um dia pode ser preciso. É por isso que chama a isso “uma alta de porta aberta”.
“Fiz com ela o que faço com todos os doentes depois de um enfarte: perceber o histórico familiar e o contexto”, diz. Só mais tarde haveria de se identificar a trombofilia, acompanhada noutro hospital, em Coimbra.
“Não é muito comum ocorrerem eventos cardiovasculares em mulheres pré-menopáusicas. Normalmente são mulheres com uma história familiar muito pesada, com outros fatores associados muitas vezes: fumam, são obesas, têm colesterol elevado ou tomam a pílula, o que também é um fator precipitante”, explica.
“A Ana conseguiu recuperar muito da sua função cardíaca, graças a todo o empenho no processo de reabilitação, e conseguiu controlar todos os fatores, incluindo a pressão arterial”, afirma o cardiologista. Fala com orgulho do processo de acompanhamento da gravidez, dois anos depois do enfarte. “É sempre um momento de stress e desafiante para o organismo. A própria gravidez é um estado pró-trombótico. Fomos ajudando na terapêutica, no ajuste da medicação – às vezes era preciso parar alguma, ou manter. Houve sempre interação entre a consulta de hematologia, a cardiologia e a obstetrícia”. Mesmo sendo cada uma num hospital diferente.
Depois do enfarte, houve uma rede de médicos que não sossegou até perceber a causa. Ao cabo de muitas análises ao sangue, chegou o resultado: trombofilia. O médico Alexandre Antunes explica, ao detalhe: “O nosso organismo tem um sistema de coagulação. Sempre que há alguma perda de integridade das artérias, por exemplo, quando há um pico de tensão, ou numa bifurcação, ou uma artéria que tenha uma curva muito acentuada, e ocorrem ‘feridas’ ou úlceras, as nossas artérias têm a capacidade de se regenerar”.
Nesse caso, quando há essa perda de integridade numa parede da artéria, as plaquetas libertam sinais químicos, diz o cardiologista. “Entrelaçam-se umas nas outras e aderem àquela zona para formar um trombo – neste caso bem intencionado, porque destina-se a impedir que possa haver hemorragia para fora do vaso sanguíneo, e por outro lado ajudam a parede da artéria a regenerar-se. O trombo dissolve-se, e tudo volta à normalidade”.
No caso de Ana Luísa, esse processo de coagulação é muito complexo. “É a chamada cascata de coagulação, em que uma série de substâncias se vão ativando umas às outras, mas tornando mais provável a formação de trombos em situações que não é suposto.”
Ana Luísa Neves
“Hoje valorizo muito mais cada momento"
O dia a dia é hoje, de novo, bastante corrido. Mas nada se compare ao tempo em que Ana Luísa Neves vivia “a 200 à hora”. Durante um tempo, a mãe acreditou que a tensão alta estava diretamente ligada ao stress, à preocupação com o estado de saúde do pai. Porque quando aconteceu o AVC, a filha “andava sempre muito nervosa”. Terá sido esse estado que uma enfermeira detetou, na hora da visita, e pediu “para lhe ver a tensão”. Ana Luísa lembra-se ainda hoje do susto: “Estava a 20, a máxima, e a mínima a 12”. Foi logo ali medicada. Depois foi ao médico, acabaria por ser diagnosticada como hipertensa. “Tomei sempre medicação, e sentia-me bem”, sublinha.
Naquele 13 de setembro de 2020, estava em casa, sozinha. Tinha um telemóvel novo e andava no processo de transferência dos contactos. De repente, sentiu uma forte dor no peito. “E nos braços. Não aguentava os braços.” Ligou à pessoa que lhe pareceu estar mais perto, a empregada de limpeza dos pais, que a levou à urgência do Hospital de Pombal. Lá chegada, às primeiras impressões, enfermeiros e médicos sugeriam tratar-se de uma crise de ansiedade. Mas ela insistia que era no peito, no coração. Até que um médico descortinou que poderia tratar-se de um enfarte. Transferiram-na para o Hospital de Leiria, onde uma equipa de cardiologia já a aguardava. E logo procederam ao cateterismo, desobstruindo a artéria entupida. “O que me explicaram na altura é que isto era como uma estrada imensa, e lá mesmo no fim ficou ainda alguma coisa que não conseguiram desobstruir completamente”, recorda.
A partir daí foi medicada, fez o programa de reabilitação cardíaca, ao qual não poupa elogios: “É ótimo, primeiro porque nos ajuda a perceber melhor o que aconteceu connosco e as alterações que deveremos fazer no nosso estilo de vida, nomeadamente alimentação e gestão de stress, para sermos mais saudáveis e evitar outra ocorrência [ao que se chama de prevenção secundária]. E depois a importância que tem o exercício físico diário na nossa vida e como nos foi ensinado a fazê-lo.” E há algo que a tem ajudado a incentivar a manter a prática de exercício físico. “Trata-se de uma aplicação para o telemóvel [criada por alunos e professores do Instituto Politécnico de Leiria] onde registamos o tempo de exercício e frequências cardíacas, que depois são analisadas pelos médicos, que vão avaliando como estamos.”
Quando regressou a casa, Ana Luísa mantinha-se em contacto com o cardiologista Alexandre Antunes. “A simpatia dele e uma forma de falar tão sábia tranquilizavam-me muito.”
Aos poucos, foi voltando ao escritório de seguros. A reabilitação ajudou-a a recuperar a condição cardíaca. “Ao princípio eu tentava fazer tudo como antes, mas depois percebia que não conseguia, porque me cansava muito. Felizmente consegui sempre fazer a minha higiene.” Sabia que não podia ficar sozinha. Para mais, pairava ali “o medo de me voltar a acontecer”.
Olhando para trás, encara o enfarte como algo que a fez olhar para a vida e para o núcleo familiar de outra forma. “Hoje valorizo muito mais cada momento.”