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Quincy Jones (1933-2024): o homem que foi tudo o que quis ser

Escapou à violência e fez-se fundamental na história da música do último século. Canivete-suíço made in Chicago, foi intérprete, arranjador, compositor e produtor. Morreu aos 91 anos.

António Moura dos Santos
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O feito mais marcante comummente atribuído a Quincy Jones é o de ter sido o responsável por lançar a carreira a solo de Michael Jackson. É compreensível — para a maioria, ser o produtor de discos como Thriller ou Bad seria suficiente para ter lugar garantido no panteão da pop e da música em geral. Mas “Q” não era como a  maioria — aliás, o facto de ter direito a ser conhecido por uma mera letra e dessa alcunha ter-lhe sido dada por Frank Sinatra é indicativo do seu estatuto de excecionalidade.

Além de “The Voice” e do “Rei da Pop”, Jones trabalhou com Aretha Franklin, Dizzy Gillespie, Ray Charles, Miles Davis, Chaka Khan,  Sammy Davis Jr., Barbra Streisand, Al Jarreau, Ella Fitzgerald Luther Vandross, Little Richard, Ice-T e Snoop Dogg, entre muitos outros. A sua lista de créditos é suficiente para esgotar tinteiros e é resultante de uma carreira de 70 anos na qual influenciou praticamente todo o espetro da música negra (sobretudo, mas não só) e estabeleceu novos padrões para a pop. Como tal, foi nomeado por 79 vezes para os Grammy, conquistando essas distinções em 28 momentos, o que o tornou num dos artistas mais premiados de sempre, apenas atrás de Beyoncé (32, atualmente) e do maestro Georg Solti (31).

Como escreve a Associated Press, “durante anos, era improvável encontrar um amante de música que não possuísse pelo menos um disco com o seu nome nos créditos, ou um líder na indústria do entretenimento e para lá dela que não tivesse alguma ligação com ele”. “Ele fez de tudo, foi capaz de pegar na sua genialidade e traduzi-la, em qualquer tipo de som ou tipo de direção que ele escolha. Acho que o fundamental, claro, é que o seu som vem da sua fome de viver, do seu pensamento de que qualquer género musical é igualmente válido”, declarou Herbie Hancock ao canal PBS em 2001, pianista com quem Quincy também trabalhou.

Em Jones, o talento musical apenas teve como rival o olho para o negócio, ou a “arte da conexão”, como apelidou o The New York Times. “Para além do seu trabalho prático com as partituras, organizou, encantou, persuadiu, contratou e validou”, escreve o jornal, descrevendo aquele que foi um dos primeiros executivos afro-americanos na indústria da música e cuja influência e sucesso também se estendeu a Hollywood e a outras formas de media. Píncaros difíceis de imaginar para quem veio de onde veio.

Quem lhe dera ser gangster

Nascido em plena Grande Depressão, a 14 de março de 1933, na famosa margem sul (South Side) de Chicago, Quincy Delight Jones Jr. cresceu no seio de uma família empobrecida e a braços com os problemas mentais da mãe, que foi internada quando o Jones ainda era uma criança. Criados numa barraca sem eletricidade pela sua avó em Louisville — ele e o irmão Lloyd —, no estado do Kentucky, ambos regressaram à “Windy City” na pré-adolescência para viver com o pai, que era um carpinteiro com ligações aos gangues da cidade.

Foi num ambiente de violência e de luta pela sobrevivência que Jones cresceu durante a infância. “Tudo o que via eram cadáveres, metralhadoras e charros, e pilhas de dinheiro nos quartos das traseiras. Quando tinha sete anos, pregaram-me a mão a uma vedação com uma navalha. Quando se é miúdo, quer-se ser o que se vê, e eu quis ser um gangster até aos 11 anos”, contou ao The Guardian em 2016.

Entretanto, Quincy e a restante família mudaram-se para o estado de Washington, na ponta oeste do país, porque o pai arranjou trabalho num estaleiro naval e foi aí que os planos para enveredar por uma vida de crime foram gorados por uma descoberta involuntária. Foi quando arrombou um centro recreativo para comer tarte merengada de limão e descobriu uma espinheta — um tipo de cravo mais pequeno — na sala do supervisor. “Foi aí que comecei a encontrar paz. Tinha 11 anos. Sabia que isto era para mim. Para sempre”, escreveu na sua autobiografia Q, publicada em 2001 e inédita em Portugal.

A música sempre fizera parte da sua vida — a sua mãe cantava hinos religiosos em casa e uma vizinha ensinou-o a martelar as notas no piano —, mas essa descoberta inusitada foi um verdadeiro catalisador para a sua carreira musical. Não foi, todavia, o único. Outro foi ter travado conhecimento com um jovem chamado Ray Charles quando a sua família foi morar para Seattle, já depois da 2.ª Guerra Mundial. Inspirado pela tenacidade da futura lenda em dominar o piano apesar de ser invisual, Jones começou a aprender a tocar vários instrumentos na escola, destacando-se no trompete e na capacidade para fazer arranjos musicais. “Conheci Ray Charles aos 14 anos e ele tinha 16, mas ele era cem anos mais velho do que eu”, recorda, citado pelo LA Times.

Daí, começou a atuar em pequenos clubes e “juke joints” com Charles e outros jovens talentos e a ganhar tarimba enquanto músico profissional, chegando mesmo a tocar com Billie Holiday durante uma passagem da cantora por Seattle. Desde cedo mostrou talento não apenas como intérprete, mas como compositor e arranjista também. O seu foco em fazer da música vida era tal que chegou a “cravar” aulas ao trompetista Clark Terry de madrugada, antes das suas aulas, e foi aceite na banda do vibrafonista Lionel Hampton com apenas 15 anos, após mostrar-lhe uma das suas composições originais — aventura entretanto cancelada no dia seguinte, quando a mulher e manager de Hampton obrigou-o a voltar para a escola.

A entrar na idade adulta, após uma breve passagem no célebre Berklee College of Music em Massachusetts à boleia de uma bolsa académica, deixou os estudos para finalmente juntar-se às digressões de Hampton, acompanhando-o pelos EUA e na Europa. Após abandonar o grupo, instalou-se em Nova Iorque, onde começou a levantar ondas com freelancer e a tratar por tu nomes consagrados e emergentes do jazz, como Charlie Parker e Miles Davis. “Como uma ameaça quádrupla capaz de escrever uma canção, arranjá-la, dirigir uma banda durante uma sessão e produzir a gravação, o seu nome começou a aparecer nos créditos de álbuns de titãs do jazz: Cannonball Adderley, Dizzy Gillespie, Count Basie, Sarah Vaughan e Dinah Washington”, escreve a Rolling Stone.

Muito mais do que uma assinatura

Os anos 50 foram marcados pelas voracidade dos seus projetos, desde tocar como segundo trompete de Elvis Presley durante as performances televisivas Heartbreak Hotel, até à uma parceria extremamente profícua como intérprete e diretor musical de Dizzy Gillespie, outro nome icónico do jazz norte-americano, quando tinha apenas 23 anos, acompanhando-o em digressões ao Médio Oriente e à América do Sul. No final da década, mudar-se-ia para Paris, onde estudou com os lendários compositores Nadia Boulanger e Olivier Messiaen. Foi na capital francesa que travou contacto com figuras como Josephine Baker e James Baldwin, mas também onde Frank Sinatra o recrutou para dirigir a sua orquestra para uma performance no Mónaco. Seria o início de uma ligação de trabalho e amizade que culminou no arranjo da versão mais famosa de Fly Me To The Moon.

Em 1958 assinou pela editora Mercury, onde teve a oportunidade de ser o líder da sua própria big-band. No entanto, foi também aí que se tornou vice-presidente e diretor de música três anos mais tarde, sendo assim o primeiro afro-americano a ser um executivo sénior de uma grande editora musical detida por brancos.

As razões para passar para o outro lado da mesa das negociações prendem-se com Free and Easy, um projeto de teatro musical ruinoso que o deixou tão esgotado como endividado  — e foi aí em que percebeu que a fama e o talento não rendiam benefícios financeiros de maneira automática. “Tínhamos a melhor banda de jazz do planeta e, no entanto, estávamos literalmente a passar fome”, confessou à revista Musician. “Foi aí que descobri que havia música e havia o negócio da música. Se eu quisesse sobreviver, teria de aprender a diferença entre os dois.”

Como produtor, pôs o seu pensamento vanguardista e o seu ouvido para o arranjo certo ao serviço da Mercury, gerando êxitos ao mesmo tempo que pagava dívidas. O primeiro mega sucesso, It’s My Party, gravado em 1963 por uma Lesley Gore com apenas 16 anos, mostrou que era capaz de trabalhar com uma mentalidade para lá do milieu da música negra. A capacidade de adaptar-se aos tempos, de abraçar novas tecnologias e de não se cingir a apenas um estilo de produção seria responsável por ter mão em sucessos até ao final dos anos 80.

Ao mesmo tempo que cimentava o seu nome como um gigante da produção musical. Quincy Jones emprestou os seus talentos à composição musical para filmes, iniciada com O Agiota, de Sidney Lumet, em 1964. Seguir-se-iam trabalhos para longas-metragens como No Calor da Noite e Um Golpe em Itália, a adaptação cinematográfica de A Sangue Frio, de Truman Capote, e a série Raízes, que lhe valeu um Emmy.

Talvez dois dos projetos mais importantes a que Quincy Jones esteve ligado no meio audiovisual tenham sido A Cor Púrpura e O Feiticeiro. No primeiro, filme de 1985 por si produzido e realizado por Steven Spielberg, foi responsável por popularizar os nomes de Oprah Winfrey e Whoopi Goldberg junto do grande público — além de ser uma obra nomeada para 10 Óscares. Já o segundo, apesar de ter sido um fracasso, proporcionou um encontro em primeiro grau entre Jones e um jovem Michael Jackson a estrear-se no seu primeiro papel.

O toque de midas

Foi no decurso das gravações deste filme, de 1978, que Jones convenceu Jackson a produzir aquele que seria o primeiro disco de uma nova fase da carreira a solo de Michael Jackson. Rezam as histórias de que os executivos da editora de MJ, a Epic, tentaram demovê-lo de escolher Jones, dizendo que ele era “demasiado jazzy”. O jovem cantor fez finca pé e o resto é história — a sequência de Off the Wall, Thriller e Bad bateria recordes e seria uma das mais bem sucedidas de sempre. Jones e Jackson definiram o que seria a pop desde então — seja pela fusão de géneros, seja pelas ideias de génio que o produtor trouxe para a sala de gravações, como convidar Eddie Van Halen para gravar o icónico solo de Beat It.

Enquanto ia espalhando o seu toque de Midas pelas várias áreas do entretenimento, Jones continuou a tocar em nome próprio, mas a sua carreira musical enquanto trompetista foi abruptamente interrompida em 1974, quando sofreu um aneurisma e foi obrigado a várias cirurgias ao cérebro. Dados os riscos para as artérias cerebrais causados pela pressão do esforço de soprar no trompete, Jones largou-o para sempre. Tal, contudo, não o impediu de continuar a editar álbuns — se bem que mais como facilitador de talento —, o último dos quais, Q Soul Bossa Nostra, lançado em 2010.

Mais focado na cadeira da produção, foi pela sua mão que resultaram êxitos de George Benson e Donna Summer. E foi na senda de todos esses sucessos que ajudou à conceção da angariação de fundos para África intitulada We Are The World, em 1985, que juntou 40 artistas, como Michael Jackson, Diana Ross, Bruce Springsteen ou Stevie Wonder — e que lhe valeu o título de “orquestrador mestre” conferida por Lionel Richie, com quem co-escreveu a canção.

Foi também pela sua mão que Miles Davis foi convencido a revisitar material antigo — prática que se recusava a fazer —  no festival de Jazz de Montreux de 1991, resultando no álbum ao vivo Miles & Quincy Live at Montreux, que Jones produziu e onde atuou como maestro. Foi, de resto, a última grande atuação de Davis, que morreria três meses depois deste concerto.

No decurso da sua vida Jones fundou uma editora — a Qwest — em parceria com a Warner Bros. A sua faceta empreendedora, contudo, não ficou por aí: ajudou também a fundar a famosa revista de hip-hop Vibe e a produtora Quincy Jones Entertainment, responsável pela série The Fresh Prince of Bel-Air que levou Will Smith ao estrelato.

A intensa vida pessoal de Jones não ficou a dever nada à carreira. Conhecido por ser um sedutor, foi casado três vezes e teve sete filhos — entre eles a atriz Rashida Jones e a modelo Kenya Kinski-Jones.