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Colesterol. A doença que muitos não sabem que podem herdar - e que continua a matar

Hipercolesterolemia familiar. O nome complicado para o colesterol herdado do pai ou da mãe é responsável por muitas mortes evitáveis. A investigadora Mafalda Bourbon quer mudar esta realidade.

Sofia Teixeira
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Gonçalo Villaverde
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Se alguém espreitasse para dentro da bagagem de porão de Mafalda Bourbon durante o ano de 1999 provavelmente ficaria confuso. A investigadora estava nessa altura a fazer o doutoramento em Ciências Clínicas, entre o Imperial College, em Londres, e o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, em Portugal, mas quando viajava de um lado para o outro, só parte da mala tinha roupa e objetos pessoais. “Quando ia para Londres, metade do espaço era usado para levar amostras de ADN para analisar lá”, recorda a cientista, hoje com 52 anos. “Quando regressava, essa metade vinha cheia de reagentes de laboratório para poder continuar o trabalho cá.”

Motivava-a na altura o mesmo que continua a animá-la hoje, 26 anos depois: identificar o mais precocemente possível doentes com hipercolesterolemia familiar (FH) de modo a prevenir esta doença cardiovascular.

O nome é complicado, o significado simples: valores altos de colesterol no sangue de origem hereditária. A condição é conhecida desde o início da década de 1970, quando Michael S. Brown e Joseph L. Goldstein, dois cientistas americanos, começaram a estudar famílias com colesterol muito elevado para tentarem perceber o que estava por detrás destes valores. E descobriram — tanto que viriam a receber o prémio Nobel da Medicina, em 1985, por isso mesmo: há defeitos no gene recetor das LDL (LDLR), situado no cromossoma 19, que fazem com que o corpo seja incapaz de eliminar do sangue a lipoproteína de baixa densidade (LDL), vulgarmente conhecida como “mau colesterol”. Depois da descoberta do gene LDLR foram também identificados outros dois genes associados a FH mas, juntos, só são responsáveis por cerca de dez por cento dos casos.

“É uma doença autossómica semi-dominante. Isto significa que cada vez que uma pessoa com hipercolesterolemia familiar tem filhos, estes têm cinquenta por cento de probabilidade de ter a doença também”, explica Mafalda Bourbon. Quando há um defeito genético no gene LDLR , não há alterações de estilo de vida — dieta, exercício físico, perda de peso — que resolvam o problema. É preciso medicação e, idealmente, desde cedo: as pessoas que têm estas mutações têm elevados níveis de colesterol desde o nascimento, o que leva ao aparecimento de aterosclerose e doenças cardiovasculares precoces, se o diagnóstico e tratamento não for atempado.

Mafalda Bourbon cruzou-se com a doença pela primeira vez em 1996, quando, depois da licenciatura em Microbiologia, na Universidade Católica do Porto, foi para Londres pela primeira vez, para fazer o mestrado em Medicina Molecular, no Imperial College. O grande interesse em estudar fora do país era adquirir competências novas e trazê-las para Portugal e foi por isso que depois optou por fazer o doutoramento, também sobre os mecanismos desta doença, entre um país e outro. Quando viajava de Londres para Lisboa, não trazia apenas reagentes na bagagem: trazia também conhecimento.

Quando regressei a Portugal, em 1998, sabia-se praticamente zero sobre esta doença: havia apenas dois ou três médicos que sabiam o que era a hipercolesterolemia familiar”, diz a investigadora.

Por isso, o mais complicado do doutoramento não foi a parte técnica — estabelecer o teste genético de diagnóstico no nosso país — mas antes convencer os médicos portugueses a usar esta ferramenta, já que de pouco adianta desenvolver um teste de diagnóstico se ninguém o utiliza.

Passou os primeiros dois anos do doutoramento em gabinetes médicos, a tentar explicar a importância de identificar estes doentes. A receção dos clínicos não era das melhores. “Diziam-me sempre: ‘Se as pessoas têm um [colesterol] LDL elevado, eu trato, Não me interessa saber se a causa é ou não genética.’” Foi com muito esforço que na sua tese de doutoramento conseguiu estudar geneticamente os primeiros 96 portugueses com diagnóstico clínico de FH.

Hoje, mais de 25 anos depois, houve coisas que mudaram muito. Outras nem tanto. “Cientificamente estamos na ponta oposta: somos um laboratório de referência a nível internacional, temos equipamento topo de gama, fazemos estudos funcionais das mutações encontradas que poucos laboratórios no mundo fazem. Mas, clinicamente, continuamos no início: temos um grande problema de subdiagnóstico e subtratamento da doença”, diz a cientista. E o problema não é só português, a mesma situação se passa no resto no mundo. Estima-se que, a nível mundial só dez por cento destes doentes estejam identificados

Isso significa que continua a ser relevante responder à pergunta que ouve há 25 anos: qual é a vantagem de saber se a causa é genética? “A grande vantagem é prevenir”, defende. “Com o conhecimento que temos hoje, devia haver zero doentes com FH com doença cardiovascular e ainda existem trinta por cento. E muitas destas pessoas têm enfarte em idade precoce: antes dos 55 anos, nos homens, ou antes dos 65 nas mulheres.”

O ideal é fazer o diagnóstico deste problema por volta dos cinco anos de idade, já que é possível começar a tratar com medicação, prevenindo a subida do colesterol, aos oito. “Se for tratada a partir dos oito anos, a probabilidade de se vir a ter um enfarte na idade adulta é praticamente zero. Por outro lado, alguém identificado com FH aos 30 anos, já tem uma probabilidade de enfarte precoce vinte vezes superior à da população em geral.”

Isto acontece porque a questão não é apenas ter ou não ter colesterol elevado num determinado momento do tempo: a possibilidade de ter um evento cardiovascular a longo prazo, como um enfarte, é influenciado pela exposição cumulativa ao colesterol LDL, desde fases precoces de vida. É por isso que é muito importante diagnosticar precocemente: para evitar que esta acumulação chegue a acontecer, seja com medicação ou com psicoeducação precoce, para evitar fatores de risco futuros ligados ao estilo de vida, como o tabagismo, o excesso de peso e o sedentarismo.

Mas há outra razão pela qual é importante saber desde cedo que se está perante uma doença genética. A FH tem duas formas, a mais frequente, a heterozigótica, em que se herda uma mutação de um dos progenitores, e outra, a homozigótica, em que a criança herda mutações do pai e da mãe. E estes são casos raros, mas muito graves: “Dependendo do tipo de variantes que herda, a criança pode não ter receptores de LDL no fígado, o que significa que não consegue tirar o colesterol da circulação. Sem diagnóstico nem tratamento, estes doentes podem ter um enfarte antes dos dez anos de vida”, explica a investigadora.

Quando estava em Londres a fazer o doutoramento, a cientista teve contacto com um caso destes: uma família da Colômbia que tinha já perdido dois filhos com um enfarte aos 12 anos e que pedia para fazer testes ao mais novo, na altura com 11 anos. Neste momento em Portugal o laboratório de Mafalda Bourbon já identificou 15 portugueses com esta forma mais rara e mais grave de FH.

Com o seu novo projecto, PerMed FH — ferramentas de medicina personalizada para melhorar o diagnóstico precoce da hipercolesterolemia familiar — Mafalda Bourbon quer dar um gigante passo em frente no diagnóstico e tratamento desta doença.

É que, apesar de ser possível detetar alterações no gene que causa a doença, o significado concreto e o impacto funcional de muitas das alterações genéticas detectadas que são identificadas ainda hoje não é conhecido: “existem quattro mil variantes [alterações genéticas diferentes] no gene LDLR, mas dessas, apenas cerca de quatrocentas têm um estudo funcional feito” explica a investigadora.

Isso quer dizer que hoje, muitas vezes, o doente faz o teste genético, mas quando chega o resultado, ele não adianta muito: a variante detetada é de significado incerto. “Com este projecto, só no gene LDLR , vamos estudar 800 destas variantes de significado incerto (70% de todas destas variantes que existem no mundo) — aquelas que não se consegue ainda saber se causam ou não doença”, explica. “Por isso, vamos fazer uma grande diferença no diagnóstico, já vai ser possível dizer aos milhões de pessoas pelo mundo fora que têm essas 800 variantes, se têm ou se não têm FH. ”

Além de permitir definir um diagnóstico, este estudo permitirá também adequar o tratamento e o seguimento clínico de cada um, ajustando tudo com base na variante de que é portador. “Hoje temos muitos tratamentos disponíveis e, idealmente, devemos adequar o mecanismo de tratamento aos mecanismos da doença. É isso que vamos também fazer neste projeto: simular in vitro o tratamento para as várias variantes estudadas.” Após concluídos os estudos, toda esta informação vai estar disponível num website, de forma a que qualquer médico, em qualquer parte do mundo, possa aceder aos resultados e tirar dúvidas sobre as análises dos seus pacientes.

O projeto, no valor de quase um milhão de euros, é feito em parceria com a Universidade de Helsínquia (que fará alguns dos estudos funcionais), o Hospital Universitário de Roterdão (responsável por organizar um focus group que pretende testar o uso destas ferramentas entre médicos) e a Universidade de La Reunion Medical School, de França (que colabora nos estudos in vitro). Tem, além disso, uma parceria com a FH Europe Foundation, de forma a aumentar a divulgação dos resultados do projeto junto da comunidade médica e da comunidade doentes com FH, um trabalho que Mafalda Bourbon garante ser absolutamente necessário.

“É a minha grande tristeza: continuarmos sem fazer a identificação clínica.” É uma tristeza de longa data: quando estava a fazer o doutoramento, ainda pensou fazer de seguida o curso de medicina. “Mas tive três filhos durante o doutoramento no Imperial College — o que foi uma loucura completa — e, quando o terminei, fiquei à espera da quarta filha e não havia tempo para tudo.”

“Estima-se que haja cerca de trinta mil casos de FH em Portugal e, em 25 anos, só consegui identificar pouco mais de mil pessoas com a doença. Mas acho que é assim a vida de um cientista: há coisas que podemos fazer e há coisas que não podemos alterar.”

Entre aquelas que está empenhada em alterar, no futuro, está a implementação do rastreio pediátrico desta doença em Portugal — como já faz a Eslovénia. Isto permite identificar os casos entre as crianças, prevenindo desde logo o impacto da doença, mas também fazer um “reverse cascade screening”, ou seja, ir subindo na linha familiar, para testar pais e avós. “Cada criança que se identifica leva à identificação de pelo menos mais duas pessoas com a doença: o pai ou mãe e um avô ou avó.”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto liderado por Mafalda Bourbon, do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), foi um dos selecionados para financiamento pela fundação sediada em Barcelona em colaboração com a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), ao abrigo da edição de 2023 do programa de bolsas de CaixaResearch de Investigação em Saúde. A investigadora recebeu um milhão de euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As bolsas CaixaResearch de Investigação em Saúde promovem iniciativas de investigação em biomedicina e saúde. As candidaturas à edição de 2025 terminam a 20 de novembro de 2024.