Contam-nos os velhos westerns e os amados livros das aventuras e desventuras de Lucky Luke, que o velho Oeste americano era percorrido por carroças de vendedores de produtos com efeitos medicamentosos extraordinários, de que destacava a banha da cobra. A eloquência dos vendedores assegurava-lhes correspondente eficácia, e a sua itinerância garantia proteção da fúria de quem tinha tomado o elixir sem sucesso terapêutico e, amiúde, com efeitos secundários. Desde 1848 que a proto-FDA (Food and Drug Administration) começou a controlar e impedir essas práticas, mas por cá, bem me lembro na infância de ver nas festas populares, senhores bem-falantes subirem ao palanque e convencerem sem dificuldade gente cheia de maleitas de que quem os cuidados da medicina verdadeira estavam longe, tinham custos inacessíveis, sendo facilmente trocáveis por outros mesmo que com resultados duvidosos.
A ciência mudou e mudou muito, passou a determinar a aprovação da venda dos medicamentos e a sua aplicabilidade, é conhecida a amplitude dos efeitos terapêuticos e indesejados, tudo isto fundado em sólidos estudos de eficácia, de forma a protegerem o mais possível o doente da falsa ciência. No entanto, novos vendedores de banha da cobra emergiram, alguns bem-falantes, com bom acolhimento nos media, por vezes exibindo títulos académicos falsos (há um caso conhecido dum Professor que o não é em medicina mas que se apresenta como tal quando fala como médico – imaginem um professor de música que obtivesse a sua graduação básica em medicina e se chamasse Professor Doutor. Esse mesmo começou a ajudar um famoso interno de oftalmologia a emagrecer obesos e agora dá recomendações cardiovasculares alternativas às que emanam das organizações científicas oficiais, prometendo vidas longas e felizes aos muito idosos).
Há uma só ciência, que se funda no gosto pela inovação e pela descoberta de novas e melhores soluções, partindo da humildade estrutural face ao ainda desconhecido, que é característica fundacional da própria ciência. A medicina experimental assenta em regras muito definidas e depuradas por práticas já seculares e em permanente evolução e usa hoje técnicas sofisticadas em que o recurso Inteligência Artificial é uma das mais conhecidas. As próprias “medicinas e técnicas alternativas” são objeto de estudo e quase todas não passam no crivo apertado da ciência, enquanto de outras, extraem-se princípios ativos que são apurados e aplicados. E há plantas benfazejas e inócuas, que não colidem com a Medicina Científica.
Não há medicinas alternativas nem ciência alternativa. As chamadas “medicinas “alternativas, serão apropriadas para tratar a doenças alternativas. Descontaria daqui algumas práticas milenares da medicina oriental, que a ciência está a estudar, compreender e integrar.
Aparecem, todavia, novos charlatães, já não com o fraque coçado e o chapéu de coco poeirento das caricaturas de Lucky Luke, mas vestidos elegantemente, falando com sotaque de Cascais e dispondo de tempo de antena e espaço em jornais. Defendem mecanismos fisiopatológicos (como o corpo funciona em saúde e em doença) alternativos e terminam rechaçando as terapêuticas ditas convencionais e propondo uns suplementos exóticos, umas mistelas muitas vezes preparadas em laboratórios de sua confiança, nunca estudadas de forma científica pela agência do medicamento (entre nós o Infarmed). Apesar de repreensões vagas da Ordem dos Médicos, penso ainda serem possuidores de carteira profissional.
Pior e recorrente nas redes sociais, é o aparecimento de falsos depoimentos pegando abusivamente em imagens públicas que são coladas a textos com a aparência de verdadeiros que conseguem ludibriar alguns. De facto, se uma personalidade médica com algum reconhecimento público aparece numa pretensa entrevista, é por muita gente levado a sério. Já fui vítima de várias dessas fraudes e na última, que corre por aí, numa falsa entrevista com uma pessoa que até não conheço, a apresentadora Cristina Ferreira, eu diria coisas absurdas como a recomendação de abandonar as medicações para a hipertensão e tomar umas pílulas que os escroques responsáveis por esta patifaria venderiam às pessoas.
Mais que indignado (denunciei de imediato à Ordem dos médicos a burla), fico preocupado pelo roubo fácil e impune da identidade (dizem-me que os autores nunca são identificáveis?…), fico muito apreensivo pelo dano que isso possa causar aos doentes, fico irritado porque me confundem com os tais vendedores de banha de cobra bem postos e que continuam por aí e sobretudo fico perturbado pela dificuldade em distinguir o verdadeiro do falso numa sociedade de informação que devia ser isenta e pugnar pela verdade. Sinto, sobretudo impotência.
Como identificar as fake-news e as fake-interviews? Como denunciar a isto e a quem se chega? Sei que na política há coisas parecidas e ainda há dias vi uma credível imagem 3D criada por IA, realista até no tom de voz, que retratava um político estrangeiro e podia pôr na sua boca o que quisesse. Neste admirável Mundo Novo que vivemos será mesmo possível no futuro distinguir a verdade da mentira, ou continuamos permeáveis à compra de banha de cobra médica, jurídica, sociológica ou política? Há alguma proteção civil para este atentado aos cidadãos? No tempo do Velho Oeste, havia ao menos o recurso ao alcatrão e penas…
03 de Novembro, 2024