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(A) :: "Rivais": um chavascal delicioso

"Rivais": um chavascal delicioso

Uma série sobre um talk show na TV britânica dos 80s, mas que é uma crónica de costumes da época e é ao mesmo tempo um desvario de sexo e traições. Que não se fiquem por estes 8 episódios.

Susana Verde
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Quem leu as minhas últimas resenhas pode considerar que sou uma pessoa difícil de agradar. Esquisitinha, que aprecia embirrar com terceiros. Que gosta de dizer mal de tudo, só porque sim. E nada disto é verdade. Bom… Quase nada. Eu amo dizer mal de coisa, mas com critério. Tal como o Lord Baddingham, um dos lados da barricada de Rivais, cultivo os meus ódios de estimação “como se de orquídeas selvagens se tratassem”.

Rivais é uma adaptação do segundo volume da série de livros The Rutshire Chronicles e, segundo a sinopse da Disney+, “mergulha de cabeça no mundo feroz da televisão onde os penteados são grandes e as ambições ainda maiores”. Isto porque a ação se passa em 1986, esse inesquecível ano em que o campeonato do mundo de futebol aconteceu no México, Portugal entrou para a CEE e Vera Roquette chegou aos nossos ecrãs com o Agora Escolha. Ainda na sinopse, podemos ler que “os negócios fazem-se nas salas de conferência, mas também nos quartos. Ninguém sabe ao certo quem vai ficar por cima. Com cada homem e mulher preocupados apenas com o próprio umbigo, poderá o amor verdadeiros florescer?” Spoiler alert: o que não falta aqui são florescimentos. De amor, não sei, mas dos chamados galhos nas testas de cônjuges diversos garantidamente. Mas como os que semeiam têm não raras vezes uma testa igualmente semeada, tudo se equilibra.

A nova série da Disney+ é boa a valer e só não digo que me conquistou logo no primeiro plano, porque o primeiro plano é o rabo aristocrata de Rupert Campbell-Black e eu tenho um casamento para preservar. Fun fact: o primeiro livro de Jilly Cooper, autora de Rivais agora adaptado para série, foi uma obra de não-ficção intitulada How to Stay Married. Curioso no mínimo,  tendo em conta a quantidade de gente adúltera que povoa o universo da autora.

[o trailer de “Rivais”:]

https://www.youtube.com/watch?v=iSQhpZX6PBk&t=44s&pp=ygUOcml2YWxzIHRyYWlsZXI%3D

Rabos e restantes zonas erógenas à parte, que é coisa que não falta nesta série sem discriminação de género, Rivais tinha, de facto, tudo para me agradar e agradou. Retrata o universo da televisão no Reino Unido, farol do audiovisual público e privado na Europa, desde sempre. Mostra o lado lamacento das elites e não estou a falar da promiscuidade. E tem personagens de verdade, que tanto são capazes de um gesto de grande generosidade, como são uns requintados filhos da égua na cena seguinte. Isto é, gente como a gente.

Lord Tony Baddingham, o dono da televisão privada regional vai roubar Declan O’Hara à BBC. Declan é uma espécie de Miguel Sousa Tavares com bigode que quer ir às canela dos entrevistados sem dó nem piedade, sendo que na estação pública está açaimado editorialmente pela então Dama de Ferro, Margaret Thatcher. Thatcher por sua vez tem como conselheiro Rupert Campbell-Black, o arqui-inimigo de Tony. Aristocrata, ex-campeão olímpico de salto equestre e, citando a mulher de Tony, Monica “um vírus que todas as esposas apanham mais cedo ou mais tarde”.

Tony vai fazer de um tudo para revalidar a licença do seu canal, tornar o programa de Declan num sucesso de audiências e terraplanar Rupert. Por sua vez, Declan quer números, mas não quer sacrificar a sua integridade enquanto jornalista. Em simultâneo, quer manter um casamento que já viu melhores dias, enquanto a sua mulher Maud, ex-atriz com dificuldade em lidar com o envelhecimento e a monogamia, quer terraplanar o olímpico Rupert na sua cama. Já o Rupert prefere a versão mais recente, a filha mais velha de Declan e Maud, Taggie. Uma joia de moça, que não sabe bem o que fazer da vida, então ocupa-se a organizar, tomar conta, alimentar e passar a pano a vida dos que a rodeiam. Mas no fundo quer passar a pano os abdominais de Rupert. E ninguém aqui a vai julgar por isso.

E temos a Cameron Cook, uma americana negra que foi contratada por Baddingham para fazer subir o share, que quer subir num meio patriarcal e branco e que faz subir a tensão dos homens que a rodeiam de diversas formas. E a vizinha Lizzie que é casada com um monte de esterco que apresenta o programa da tarde e não consegue ver a mulher incrível com quem está casado, porque o ego lhe obstrui a visão. E Fred que é casado com a Mousie, que está mais interessada nos seus gladíolos, na sua ascensão social e em controlar as calorias que o marido ingere, que no marido em si. E Monica, a mulher de Baddingham, que apoia o marido em tudo, formando uma parceria que o ajudou a chegar onde chegou, mas cuja lealdade tem limites. E mais uma mão cheia de personagens interessantes, bem construídas e representativas de uma época a braços com uma mudança de paradigma de costumes, liberdades e opções no leito.

David Tennant é brilhante a fazer vilões e o Lord Tony Baddingham é mais uma prova disso. Recomendo Jessica Jones, série da Marvel extremamente subvalorizada na minha opinião, em que Tennant é maquiavélico de tirar o sono. Já ao Alex Hassel nunca tinha posto a vista em cima e apreciei cada momento. E não vou particularizar a cena em que ele joga ténis nu. Longe de mim. Na verdade, as interpretações são ótimas na generalidade e quase todos dão o corpo ao manifesto de forma relativamente explícita, com ou sem porte atlético, medidas padrão e harmonização facial, o que me agradou particularmente. Avanço até que uma das cenas mais sensuais é interpretada por um homem e uma mulher que não são o protótipo do eye candy, mas mostram como se faz.

É bom entretenimento com substância e múltiplas camadas. Tem um mix muito bem feito entre a reconstituição da época com referências a personagens e eventos verídicos, e a história ficcionada. Tem romance ingénuo, gente muitíssimo depravada, mercenários capazes de tudo para passar por cima dos outros e outros tantos com os valores no sitio certo. Dá vontade de ver de uma assentada (vi em dois dias, apenas por falta de tempo), as interpretações são de fino recorte, a direção de arte leva-nos para os coloridos e cabeludos anos 80 e para quem adora televisão isto é um deleite em 8 episódios, que espero do fundo do coração não se fiquem por aqui, até porque há mais uma série de livros adaptáveis.

Vou fazer aqui uma pausa nos Rivais e usar o meu tempo de antena para o seguinte: desde que me entendo por gente que a primeira coisa que faço quando o dia começa, e/ou quando chego a casa, é ligar a televisão. Quando só havia a RTP, via tudo o que tinha para me oferecer, incluindo o 70X7 e o TV Rural. Lembro-me de não ansiar pelo fim-de-semana, porque não havia Tieta de Agreste. Do meu dia favorito da semana ser a segunda-feira, porque dava o 1,2,3. É claro que depois vieram os canais privados que também consumi com ganas, o YouTube, as plataformas e sucedâneos e vou a todos. Porque faz parte do meu trabalho, porque sou viciada, mas fundamentalmente porque posso e tenho dinheiro para isso. A liquidação do canal público de televisão que está em curso é para mim tão absurda e  prova um alheamento tão grande daquilo que é o “país real”, que é tão usado em discurso político e tão ignorado pelo poder decisor, que espero sinceramente que o sonho molhado dos canais privados não se transforme em realidade. A dada altura Baddingham diz que “A vingança é um prato que se serve melhor na televisão” e espero que a RTP se continue a vingar de quem a quer atacar servindo o país.

Voltando à programação habitual: no último episódio de Rivais, há um discurso que é uma carta de amor à caixa mágica. Espero que os lordes do streaming a tenham ouvido com carinho e anunciem nova temporada, por amor à televisão, ao dinheiro ou só para ver gente a pinar com prazer e sem pudor.