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(A) :: Em Middletown, a cidade de Vance, o filho da terra ainda é acarinhado. “Quem sabe se o JD não chega a Presidente?”

Em Middletown, a cidade de Vance, o filho da terra ainda é acarinhado. “Quem sabe se o JD não chega a Presidente?”

Na cidade onde o candidato a vice cresceu, há reações mistas sobre o seu livro de memórias, a sua relação com a terra e esta eleição. Mas a maioria acha que JD pode ajudar a pôr Middletown no mapa.

Cátia Bruno
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Diogo Ventura
photography

“Nunca me esquecerei de onde vim. É bom estar aqui, esta cidade tem sido tão boa para mim.” Este verão, JD Vance regressou a Middletown. No liceu onde estudou, fez um pequeno comício a que ocorreram centenas de pessoas. E disse que ia pedir ao Serviço Secreto para organizar uma visita à Central Pastry, onde ia regularmente quando era criança comprar doces.

A visita não aconteceu na altura, mas a dona, Vera Stramka, não se chateou. “Sabe como é o Serviço Secreto, não gostam de visitas que sejam anunciadas, preferem que seja de surpresa”, diz esta colombiana, que veio para os EUA aos 17 anos e que é dona desta padaria e pastelaria em Middletown há mais de 40. O cheiro de bolos acabados de cozer está pelo ar enquanto Vera conversa animadamente com o Observador, atrás do balcão, sobre o candidato a vice-presidente republicano de apenas 39 anos que cresceu nesta pequena cidade operária, entalada entre os dois grandes centros urbanos de Columbus e Dayton.

“Quando era miúdo, ele costumava vir cá com a avó. Não me lembrava do nome dele, mas lembrava-me perfeitamente daqueles olhos”, recorda Vera. “Estes são os preferidos dele, os uglies [feios]”, nota, apontando para os donuts castanhos, cobertos de glacé de açúcar e meio encarquilhados pela fritura.

A pasteleira acabou por ter a desejada visita de Vance no dia 19 de outubro, já mais perto da data da eleição. “No dia anterior, encontrei um polícia com um cão a cheirar os carros aqui em volta. Falei com ele e ele disse que era de Cincinnati. Perguntei o que estava a fazer ali e ele disse: ‘Vai receber um convidado especial’. Percebi logo”, conta Vera. Quando Vance chegou no dia seguinte à loja, cumprimentou os clientes que ali estavam e falou um pouco com a dona. “Ele lembrava-se de mim. Sabe como é, os políticos não esquecem as caras e os nomes”, comenta, com visível orgulho. Só não conseguiu uma coisa:  “Queria dizer-lhe para enviar uma mensagem ao Trump, que lhe dissesse para não dizer asneiras. Mas não consegui.”

Middletown, a cidade industrial em declínio captada em Hillbilly Elegy

Vera Stramka (o apelido checo vem do marido, também ele filho de imigrantes) chega todos os dias à pastelaria por volta das quatro da manhã para começar a cozinhar, apesar dos seus 79 anos. E, embora sublinhe que está registada como eleitora independente e não querer “falar muito de política”, acaba por deixar no ar algumas das suas impressões.

Reconhece que o candidato republicano se “mete em problemas” por falar sem filtros, mas, mesmo sendo latina, não está chocada com os recentes comentários num dos seus comícios por um comediante, que comparou a ilha de Porto Rico a “lixo”. “Não foi Trump que disse isso, foi o comediante”, sublinha. “Já [Joe] Biden disse mesmo a frase de os apoiantes de Trump serem ‘lixo’. E depois veio o [Mark] Cuban [empresário e apoiante de Kamala Harris] e disse aquilo sobre as mulheres próximas de Trump não serem inteligentes. Para quê fazerem isto? Falem antes da vida das pessoas”, queixa-se. Sem declarar abertamente a sua intenção de voto, acaba por deixá-la subentendida: “Digo-lhe uma coisa: temos de votar no mal menor. E o que é certo é que, há quatro anos, estávamos melhor do que estamos agora.”

A sensação é transversal a Middletown, cidade historicamente operária e mais próxima dos democratas que em 2016 se virou para Donald Trump, como tantas outras semelhantes no Ohio. Em tempos, a grande produtora de aço Armco e os seus trabalhos sindicalizados bem pagos mantiveram Middletown à tona, como nota Vera: “Eles tinham cinco mil trabalhadores. Muitos vinham cá e eram tantos que tínhamos de guardar uma prateleira inteira, de cima abaixo, com donuts só para eles! Depois a Armco saiu daqui e Middletown começou a ir assim”, diz, colocando os dois polegares para baixo.

O retrato é semelhante ao que foi feito pelo próprio JD Vance no seu livro de memórias Hillbilly Elegy sobre o seu crescimento numa cidade onde o rendimento médio é 25 mil dólares mais baixo do que a média nacional. Criado pelos avós, a quem chamava Papaw e Mamaw, conseguiu subir na vida até se tornar investidor de risco, apesar da violência na relação entre o padrasto e a mãe, que viria a desenvolver um problema com drogas. Graças ao salário do avô na Armco, teve alguma estabilidade na infância: “Para os meus avós, a Armco foi uma salvadora económica — o motor que os trouxe das montanhas do Kentucky para a classe média da América”, resumiu no livro. O declínio industrial, entretanto, impactou todo o resto de Middletown, como o próprio descreve. O supermercado onde trabalhou em adolescente, o Dillman’s, já não existe, por exemplo. É agora uma Dollar General, loja da cadeia de supermercados nacional que vende produtos a baixo custo.

Quando Hillbilly Elegy foi publicado, Vance — que deixou Middletown para ir para o Exército, esteve no Iraque e acabou por entrar em Yale — foi catapultado para o reconhecimento público. O seu retrato franco e desarmante sobre as origens da família e o local onde cresceu fizeram do livro um fenómeno, com muitos a considerarem que ajudava a explicar a viragem das classes trabalhadoras do Partido Democrata para Donald Trump. À altura, Vance não gostava do candidato — chegou a compará-lo a uma droga que entorpecia os seus antigos vizinhos; hoje, é o seu candidato a vice-presidente.

Para a maioria dos habitantes de Middletown com quem o Observador se cruzou, isso não é um problema. “Tenho esperança que se o JD for eleito nos possa ajudar. As pessoas na cidade estão felizes por ser ele, têm esperança”, resume Vera, antes de entrar um fornecedor com caixas de farinha e açúcar — “pode deixar aí, querido”, diz a pasteleira, indicando que só as vai arrumar mais tarde para poder continuar a conversar. “Vão ao jogo de hoje à noite da equipa do liceu?”, pergunta-nos. “Já sabem que o Serviço Secreto nunca anuncia aonde ele vai antes… Se tiverem sorte, ele ainda aparece!”

Na rua onde Vance cresceu, há esperança no homem que cresceu “pobre” e que é “jovem o suficiente para não ter esquecido as suas raízes”

O jogo dos Middies, a equipa de futebol americano do liceu local, é só à noite, o que dá tempo de sobra para ir até à rua onde Vance cresceu: a McKinley Street, num bairro de classe média remediada, onde muitas das casas estão a precisar de obras e outras tantas estão claramente vazias.

Mike Watson é um dos poucos que comprou uma casa naquela rua — a maioria aluga por incapacidade financeira de dar uma entrada — e está no alpendre a cortar madeira, com uma serra elétrica, para a renovação que está a fazer no imóvel. O antigo camionista não quer ser fotografado, mas aceita falar sobre a cidade onde nasceu e para onde voltou agora na reforma. “Como a Armco foi comprada e se manteve aqui, o impacto não foi assim tão grande”, garante. “Agora, se tivesse saído, isto tornar-se-ia… Não digo uma cidade-fantasma, mas faria uma grande diferença.” A indústria atual, porém, já não tem a força de outrora e isso sente-se, apesar de o cheiro pouco agradável que está no ar indicar que ainda há uma fábrica de papel mesmo à beira da McKinley Street.

“Para ser honesto, os últimos quatro anos não foram bons. Decidir votar no mesmo e esperar que o resultado seja diferente é loucura. Estou a rezar para que haja uma mudança”, confessa Mike. JD Vance, explica, pode ser o rosto desse mudança, talvez até mais do que Trump. Ao contrário da maioria “dos políticos nos EUA, que vêm de famílias com dinheiro”, explica, “Vance cresceu numa pequena cidade, o que molda uma pessoa”. “É jovem o suficiente para não ter esquecido as suas raízes”, sentencia.

A antiga casa onde JD Vance cresceu fica uns poucos números ao lado. Azul clara, tem as janelas fechadas, porque os atuais inquilinos não estão em casa. Mesmo em frente há um parque com um pequeno court de ténis, baloiços e um campo de basquetebol. Em Hillbilly Elegy, Vance escreve que, à medida que crescia, notou que “as linhas do court de ténis esbatiam-se a cada mês e a cidade deixava de tapar os buracos ou de substituir as redes dos cestos de basquetebol”. Hoje em dia, o Miami Park parece mais bem cuidado — mas está completamente vazio, apesar de a esta hora os miúdos já terem voltado das aulas.

Uma das moradoras da rua — chamemos-lhe “Jane” — é uma das poucas que tem no seu relvado um cartaz de apoio a Kamala Harris. Não quer dar o nome verdadeiro ao Observador, mas não resiste em partilhar o que pensa sobre Vance: “O livro corresponde à realidade, mas ele é um falso. Basta ver como dizia mal do Trump e agora está ali a lamber-lhe os pés”, comenta. “Trabalhei 27 anos numa escola. Nunca gostei de bullies”, remata a antiga bibliotecária, antes de voltar para o quintal para ir ouvir um audiobook enquanto apanha sol.

Jane sabe que é uma exceção na rua — e na cidade. A grande maioria dos que vivem na McKinley Street gostam de JD Vance e são apoiantes de Donald Trump. Como Matthew e Becky, um casal nos 40 anos, profundamente revoltados com a atual administração Biden e com os democratas. “Não acho que a eleição vai ser justa. Já fizeram batota antes e vão voltar a fazer. Isto é tudo uma grande mentira”, diz Matthew. Apesar de já ter ido votar, acha que o seu boletim pode bem vir a ser alterado. “Pode haver uma insurreição desta vez. Eu não me vou meter nisso, porque o outro lado tem gente maluca, mas… Pode bem haver.”

A escolha para o casal é simples: Trump é o candidato que lhes parece ser mais capaz de levar a cabo uma revolução no país, que acabe com as desigualdades económicas que sentem. “A não ser que se seja rico, viver na América é uma porcaria”, decreta Matthew. “Vejam só: hoje faço anos e é o nosso aniversário de casamento. Fomos só comprar algumas coisinhas e vamos jantar em casa, não vamos fora. É tudo demasiado caro, não dá.”

Em JD Vance, o casal só vê atributos positivos: “Ele cresceu aqui, sabe como temos dificuldades e como há pobreza nesta zona”, diz Becky. Não leu o livro, mas viu a adaptação em filme do realizador Ron Howard e gostou. “Estava bastante fiel. Nós também temos família no Kentucky, portanto identificámo-nos”, acrescenta, rindo-se. “É assim, somos pobres.”

Nas bancadas do jogo de futebol dos Middies, há afro-americanos com esperança em Harris e desdém pelo filho da terra — “JD, ‘O Palhaço’ Vance”

Mais perto do centro da cidade, as mansões que em tempos foram consultórios de médicos e advogados são agora morada da classe mais endinheirada de Middletown e é aqui que se veem mais cartazes pró-Harris. É ali que nos encontramos com Scotty Robertson, pastor de uma igreja batista progressista, num dos cafés da baixa que exibem lá dentro uma bandeira LGBT, o Triple Moon Coffee. Robertson, que também trabalha como voluntário do Partido Democrata, garante ao Observador que nem todos ali se identificam com Hillbilly Elegy e votam em Donald Trump.

“Cresci nas montanhas da Appalachia, na Virgínia Ocidental, e é semelhante ao que ele descreve [sobre o Kentucky]”, reconhece. Scotty também foi criado pelos avós, como Vance, e a influência do avô (igualmente pastor batista) foi decisiva na sua vida. “Mas JD Vance sabe lá… Middletown não é a Appalachia”, sentencia.

“Não é justo dizer que todas as pessoas de Middletown são como ele descreve”, acrescenta. “Há diversidade na cidade. Os afro-americanos, os latinos… Tudo isso dá votos a Harris”, nota, com destaque para o South Side onde há uma forte comunidade de eleitores negros e também vários imigrantes latinos. “É verdade que passo a maior parte do meu tempo com democratas, mas sinto que há reações mistas dentro da comunidade. Acho que vai ser renhido aqui.”

As nuances de Middletown são visíveis quando chegamos ao jogo dos Middies, a equipa de futebol americano do liceu local, que hoje tem um jogo importante na escola secundária Wayne, a 40 minutos de distância. A distância não é impeditiva para a maioria dos familiares, que ali estão na bancada dos visitantes para apoiar os seus filhos e netos — a larga maioria adolescentes negros — vestidos em roxo quase integral. Para muitos adolescentes, como em várias partes da América, o desporto, e em particular o futebol americano, podem ser um bilhete para saírem de Middletown em busca de oportunidades melhores.

Não foi o caso de JD Vance, que no liceu decidiu jogar golfe, seguindo o conselho da avó — “é um desporto de ricos”. Na altura, como agora, o liceu local é composto por adolescentes cuja maioria nunca irá para uma das grandes Universidades como Yale, aonde Vance chegou depois da passagem pelos Marines — esses sim, o seu bilhete para sair da cidade. Ainda hoje, 80% dos alunos do liceu de Middletown vivem abaixo do limiar da pobreza.

Para alguns, o futebol é a escapatória em direção a uma vida melhor. Como Chambers, que aquece lá em baixo no campo com o número 0 nas costas. Conseguiu uma bolsa para a Universidade de Youngstown (também no Ohio) graças aos bons resultados desportivos, conta a mãe, Micah Spencer: “O meu filho joga em todas as posições, ataque, defesa, tudo. Só não é quarterback”. Nas bancadas, há grande entusiasmo: os Middies estão nos playoffs e há anos que não chegavam tão longe no torneio regional. Um impulso conseguido em parte graças ao regresso de Jalin Marshall, antigo jogador da NFL e nativo de Middletown, que voltou para se tornar um dos treinadores da equipa.

“Wayne é um liceu com uma equipa muito boa. Seria ótimo se ganhássemos, mas se não chegarmos tão longe está tudo bem, já valeu a pena por isto”, antecipa Micah enquanto ainda decorre o aquecimento. Sobre as eleições, é taxativa: “Sou uma mulher negra, em quem é que acha que vou votar? Até já o fiz antecipadamente. Faço parte de uma minoria. Avançámos muito, mas ainda há muito a fazer.” E sobre JD Vance, qual é a sua opinião? Micah revira os olhos. A cunhada, sentada na bancada atrás, diz secamente: “JD, o ‘Palhaço’ Vance.”

O jogo arranca e o primeiro quarter não corre de feição aos Middies, com os Wayne Warriors a avançarem mais no terreno quando estão ao ataque. Das bancadas, há gritos de incentivo, com gente a dizer “Bora lá, Middies!” e outros a incentivarem placagens aos adversários — “Apanha-o, apanha-o, apanha-o!” Mas, à medida que o jogo avança, os jogadores de branco e roxo vão recuperando e acabam por fazer um touchdown e ficar à frente no marcador. A multidão anima-se e os gritos vão ficando mais criativos.  “A vossa defesa é como um 7/11: está sempre aberta!”, grita um pai para os Warriors, comparando-os à loja de conveniência que está aberta 24 horas por dia.

Futebol é futebol e, por isso, quando os miúdos estão em campo pouco ou nada se fala de política. A certa altura, alguém lança um entusiástico “JD, meu mano!” e, por momentos, pareceu que poderia haver essa possibilidade — mas, afinal, era só um dos adeptos a chamar JD Foust, o diretor desportivo do liceu, para o cumprimentar.

Na bancada mais acima, porém, há quem perceba pouco de placagens, fumbles e quarters e prefira comentar a eleição. “Eu de futebol não percebo nada, só estou aqui pelo meu neto. Mas política? Isso sim, podemos falar”, diz ao Observador Jenny, uma reformada que veio preparada para a noite fria do Ohio com uma manta e protetores de lã para os ouvidos. “Estou muito entusiasmada, porque acho que Trump vai ganhar.” Antiga enfermeira, como a mãe de Vance  — que mais tarde perdeu o trabalho por causa da sua adição —, está preocupada com “as jovens burras que são muito desinformadas” na questão do aborto. “Aqueles bebés têm um ADN único e irrepetível. São uma pessoa”, diz, elevando o tom de voz indignada.

Sobre JD Vance, é perentória: “Gosto muito dele.” “É muito inteligente, explica-se bem. E vai ajudar. Conheço pessoas, como uma vizinha minha, que não conseguem engolir a personalidade de Trump — é normal, ele é de Queens, é um durão. Mas ela gosta do Vance”. Jenny garante que muitos vão votar nos republicanos por considerarem que a influência do político de Middletown sobre Trump pode ser positiva. “Quem sabe se o JD não chega a Presidente depois?”, afirma esta avó de um jogador.

Lá em baixo, no campo, há uma reviravolta impressionante. Os Middies levam distância no marcador já há muito, mas, perto do último quarter, um jogador dos Warriors dá uma arrancada fenomenal e marca um touchdown digno de filme. O relógio já está nos últimos segundos e os Middies não têm tempo para recuperar. O sonho dos playoffs para a equipa do liceu esteve perto, mas acabou: perdem por 20 pontos, contra os 26 dos adversários.

A bancada dos visitantes esvazia-se num ápice, uma mancha roxa a andar em passo apressado, movida pelo frio e pela desilusão. Micah Spencer, que viu o filho lesionar-se a meio do jogo e falou logo por telefone com a equipa lá em baixo, explica que foi uma coisa menor e que Chambers “está bem”. “Só nos queremos ir embora”, diz, antes de sair em passo apressado e de cabeça baixa, enquanto do outro lado do campo os festejos são audíveis e os adolescentes dos Warriors são recebidos como estrelas pelos colegas de escola.

No futebol como na política, há sempre um vencedor e um derrotado. No dia 5 se perceberá qual das duas bancadas de Middletown estará a festejar no final do jogo. Para já, só há uma certeza: JD Vance, ao contrário do que Vera previa, não apareceu esta noite para ver os Middies.