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Fontaines DC no Campo Pequeno: eles não cedem um milímetro

Estes irlandeses podem até querer ser os novos U2, os novos Arcade Fire, a nova Banda Grande Que Enche Estádios – mas querem-no à sua maneira. No concerto de sexta-feira demonstraram-no, mais uma vez.

João Bonifácio
text
Tomás Silva
photography

Havia uma vibração no ar, na noite desta sexta-feira no Campo Pequeno, no concerto dos Fontaines DC. Era o tipo de situação que costuma ser caracterizada com recurso à expressão “Querem ser os novos U2” — com isto querendo significar que uma determinada banda quer deixar de fazer música para um nicho, ganhar novos ouvintes fora do círculo da música indie e começar a encher salas de dimensão avantajada.

Aconteceu com os The National, por exemplo: depois de descobrirem o seu som com Alligator, expandiram-no com ligeiras variações em Boxer e High Violet, até que, com Trouble Will Find Me, o som alargava-se, a produção tornava-se mais profissional e limpa e era possível sentir o cheiro a arenas esgotadas. Isto é, e para usar uma expressão que se tornou corriqueira, queriam ser os novos U2.

A expressão é feliz, no sentido em que com recurso a poucas palavras consegue sintetizar a ambição de uma banda, mas também padece de inexatidão: quando os U2 se tornaram uma banda à escala global, com Achtung Baby, já tinham tido muitas vidas e, inclusive, haviam trocado o som pós-punk por um som mais americano, uma mudança que não correu bem. Achtung Baby, tirando 3 ou 4 canções mais óbvias, não era um disco simples e o que os fez explodir teve muito a ver com aspetos não-musicais: os vídeos, em que gozavam com o seu estatuto de estrelas sérias, todo o cenário do palco na Zoo TV Tour e na PopMart Tour, que se seguiu (com o famoso arco a gozar com o símbolo da McDonald’s).

Os Fontaines até podem ter escrito Romance, o seu mais recente disco, a pensar em salas maiores (um objetivo conseguido, diga-se de antemão) e em chegar a um público novo, que antes não os conhecesse; mas se quiserem ser os U2 querem sê-lo à sua maneira: tirando um lençol a tapar o palco durante o primeiro tema (Romance, que abre o disco homónimo), pouco mais havia no palco: o nome da banda em letras grandes a pairar no ar e o coração da capa em fundo.

Até na roupa eles parecem estar a marimbar-se para o estatuto de estrelas pop: Grian Chatten, o vocalista, estava de calções e meias e T-shirt de futebol, tudo dois números acima, assemelhando-se antes a um puto de 8 anos; o resto da banda exibia calças de fato de treino (umas vermelhas, umas roxas e umas largueironas), assemelhando-se mais a uma banda de liceu, que passasse o tempo a fumar ganzas e a quem nunca tivesse ocorrido ouvir os conselhos dos pais para vestir uma roupinha melhor.

Chatten só se dirige ao público por duas vezes: na primeira disse “Hi. Free Palestine”; na segunda disse “Lisbon. This is for you”, introduzindo Favourite, uma das grandes canções do novo Romance (em que cantam “You were my / favourite for a long time”. Convenhamos que isto está muito longe de ser uma banda a esforçar-se imenso por conquistar o público – os Fontaines até podem querer ser maiores do que são neste momento, mas a quererem-no, querem-no à sua maneira.

Se tiramos as luzes, o cenário do palco, as roupas, se nada disto é um fator, então sobra o quê? Bom, aquela coisa que hoje em dia parece pouco importante mas é fundamental: a música. No meu Spotify fiz gosto a seis canções de Romance: Starbuster, Here’s the thing, In the modern world, Horseness is the whatness, Death kink e Favourite. Não perco muito tempo a pensar nos gostos – são só canções que me agradam e surpreendem à primeira – o gosto é quase uma reação automática. A curiosidade é que Romance é o disco em que coloquei mais gostos, mais até que Dogrel – como é que um banda que acabou de lançar um disco com tantas canções orelhudas decide abordar um concerto?

A resposta está no alinhamento – tirando Romance a abrir, as cinco canções seguintes são um passeio pela discografia da banda: Jackie down the line (de Skinty Fia), é a segunda, seguida de Televised Mind (de A Hero’s Death), A Lucid Dream (A Hero’s Death), Roman Holiday (Skinty Fia), Big shot (Skinty Fia) e, finalmente, ao sétimo tema, o regresso a Romance com a ótima Death Kink.

Durante este período a frase que mais escrevi nas minhas notas foi “grande riff”, imediatamente seguida de “outro grande riff”, o que nos remete para a génese dos Fontaines DC: quando surgiram, com o magnífico Dogrel, em 2019, eram – como tantas bandas antes, incluindo os Pavement – uma espécie de variação dos The Fall, cujo som sempre assentou em torno de um riff repetitivo e a entrega vocal mais falada / cuspida de Mark E. Smith do que propriamente cantada.

Dogrel já revelava uma banda com um som coeso, perfeitamente afinado: os riffs infeciosos, a entrega carismática de Grian Chatten (de quem nunca se percebe uma palavra mas isso é perfeitamente OK), e canções, grandes canções (da estupenda Boys in the better land ao dedilhado visceral de Too real). Esse cerne manteve-se nos restantes discos até Romance, e quando ontem entraram em palco os Fontaines estavam conscientes de já ter acumulado um número suficiente de grandes canções para atirarem ao público cinco canções seguidas dos discos anteriores logo a abrir.

Não estavam enganados, ao decidir-se por um concerto em modo best-off: a sala estava esgotada, o público reagia a cada canção como se a conhecesse perfeitamente e em meia-dúzia de casos cantava as letras – em Boys in the better land há moche, como deve sempre haver no rock’n’roll e como é impossível não haver numa canção tão infeciosa e com uma velocidade tão astronómica.

Mas não conseguimos deixar de notar a reação imediata do público a Here’s the thing, do novo Romance – conhecem-na já na perfeição, cantam-na, e como não haviam de o fazer: só o riff inicial, sujo e nos agudos, já bota a cabeça a abanar; Chatten, que normalmente fala mais do que canta, arranca uma melodia pungente; a canção está cheia de pequenos truques (paragens, arranques, ataques aos pratos, uma noção exata de como ocupar o espaço) que a torna impossível de resistir. Favourite, outra tremenda canção que abre logo com uma bela malha de guitarra nos agudos (e que se torna irresistível com aquele ritmo alucinante e aquela melodia), arranca o mesmo tipo de reação.

Favourite fecha o concerto ao fim de dezasseis temas; uns minutos depois eles regressam para o encore com In the modern world, uma das canções de Romance em que mais se torna notório a mencionada viragem sonora: “In the modern worl / I feel nothing”, cantam, mas as pessoas na audiência sentem coisas. Segue-se I love you, de Dogrel e depois o momento pelo qual toda a gente estava à espera: Starbuster é um colosso, uma das grandes canções do ano, feita para ser cantada por estádios inteiros, o tipo de canção que devia fazer parte do jogo FIFA, que devia ouvir-se em supermercados e em hospitais (para animar os doentes). O tipo de canção que vai fazer parte da nossa vida para sempre.

E pronto: ao fim de hora e meia o concerto acaba, não houve isqueiros acesos ou palminhas ou conversas com o público ou sequer um adeus, apenas uma sequência de tremendas canções à guitarra repescadas aos diversos discos dos Fontaines e, no fim, um pouco mais de foco em Romance. Os Fontaines podem até querer ser os novos U2, os novos Arcade Fire, a nova Banda Grande Que Enche Estádios – mas querem-no à sua maneira e não vão ceder um milímetro a qualquer forma de populismo.