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A glória, a desgraça e a reconquista de Martha Stewart, a influenciadora implacável

Construiu um império do nada. Tornou a vida doméstica sexy e apelativa, lançou livros, produtos e programas de televisão. Acabou presa, perdeu tudo e reinventou-se. A sua vida está agora na Netflix.

Andreia Costa
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A vida de Martha Stewart dava um filme. E a ideia já deve ser antiga na cabeça de muitos. Finalmente, concretizou-se. E deu um documentário, o que é melhor ainda do que uma longa-metragem de ficção, porque as voltas que esta história dá são mais impressionantes do que qualquer narrativa inventada. Já disponível na Netflix, Martha conta a jornada daquela que é descrita como a “influenciadora original” e esta frase de marketing muito acertada não só vende bem o conteúdo como é muito acertada.

Vinda de uma família de classe média baixa, Martha Stewart começou ganhar dinheiro como modelo, para depois se transformar em corretora da bolsa, reinventando-se de seguida como dona de casa exímia, depois lançando um negócio de catering e um império multimilionário de livros, revistas e programas de televisão. Quando estava no topo, foi apanhada no meio de um esquema de fraude e acabou presa durante cinco meses. O império ruiu, mas Martha Stewart, já depois dos 60 anos, reinventou-se da forma mais improvável possível: fez um roast a Justin Bieber (ou seja, gozou com a estrela pop como exímia aptidão, mas não só com a esta estrela pop particular) e uma amizade com Snoop Dogg.

Aos 83 anos tem agora uma nova vaga de fãs, mais jovens, e mais de quatro milhões de seguidores no Instagram. Tudo aqui é fascinante, começando e acabando na protagonista, que deu total acesso aos seus arquivos, mas que só responde ao que lhe interessa, da forma que lhe interessa e quando lhe interessa.

[o trailer de “Martha”:]

https://youtu.be/6blC6bsgZmc?si=93o0Ig2tABD5CEmU

Para o documentário de quase duas horas, o realizador R.J. Cutler — responsável por projetos sobre Anna Wintour, John Belushi ou Billie Eilish — entrevistou amigos, colaboradores, irmãos, a filha e até concorrentes. Deles só ouvimos a voz, já que uma escolha deliberada ditou que só Martha Stewart é filmada, sentada frente a frente com a câmara. É ela o fio condutor do relato e, quando não lhe interessam as perguntas do realizador, desvia o assunto ou fica simplesmente a olhá-lo fixamente, à espera que seja ele a ceder.

Quando fala sobre as infidelidades do marido, Andy Stewart, é questionada sobre o caso que ela própria teve. “Isso não foi nada, não significou nada”, responde. E dela não temos nem mais uma palavra sobre o assunto. Não se interessa “por sentimentos”, palavras da própria. Quer saber o que a pessoa do outro lado está a fazer, não o que está a sentir. Nunca teve instinto maternal e isso é admitido pela própria e pela filha, Alexis, que descreve o ambiente familiar como um local onde teve de reprimir muita coisa.

Narcisista, controladora, implacável, abusiva. Martha Stewart é assim descrita pelo círculo próximo e por quem trabalhou com ela — embora os intervenientes refiram várias vezes que, se fosse um homem com estas características, não seria mal visto, mas sim elogiado. Não é que Martha Stewart esteja muito preocupada com o que pensam ou dizem dela — pelo menos não agora depois dos 80 anos, mas nem sempre foi assim. “Perfeitamente perfeito” era o seu mote e isso aplicava-se à imagem pessoal que construiu de forma imaculada e que servia de exemplo à ilusão que queria vender.

O relato de Martha começa pelo início, no seio de uma família com seis crianças. O pai não aguentava um emprego e batia aos filhos, a quem ensinou desde cedo a cultivar uma horta e um jardim (essa foi a sua única herança). A mãe, professora, vivia no meio do caos do dia a dia, com 16 refeições para preparar e pouco afeto para dar aos filhos. Martha Stewart começou a trabalhar como modelo para ajudar nas despesas, seguindo depois para Nova Iorque, para a faculdade. Conheceu Andy Stewart e casou-se com ele aos 19 anos. A lua de mel de cinco meses pela Europa abriu-lhe os horizontes e foi a primeira semente para o império que viria a criar.

“Ninguém era sofisticado na América dos anos 60”, refere. Mas na Europa eram: havia jardins pensados e cuidados e um nível de pormenor na culinária que a deixou perplexa. De regresso aos EUA, depressa se sentiu aborrecida com a vida de dona de casa. Transformou-se então em corretora da bolsa em Wall Street, numa altura em que as mulheres no meio eram tão poucas que nem casas de banho femininas existiam. Mas aquele também não era o seu destino.

Passados alguns anos, a família mudou-se para Westport, Connecticut, onde Martha se dedicou a reconstruir uma quinta degradada. Seguiu-se um negócio de catering que depressa chamou a atenção dos ricos e famosos. Foi publicado um primeiro livro, Entertaining, sobre a arte de bem receber, que catapultou o seu nome a nível nacional. De repente, não era assim tão mau ser dona de casa. De repente, saber fazer um assado ou um arranjo com flores era um dom que todas as mulheres norte-americanas podiam (e queriam) copiar. Martha Stewart era a deusa do lar e o exemplo de um casamento perfeito. Ironicamente, enquanto promovia o livro Weddings, o próprio casamento, de mais de 20 anos, ruía nos bastidores. Sobre isso, o que tem Martha Stewart a dizer? “Pode guiar-se pelo que está nas cartas [a correspondência enviada ao ex-marido nessa fase]”, diz simplesmente ao realizador.

O que podia ter ditado o fim do seu império deu-lhe, em vez disso, mais alento para mostrar aquilo de que era capaz. Fez uma parceria com a cadeia de supermercados K-Mart — uma jogada inédita que juntou um nome famoso a uma marca acessível a todos —, lançou a revista Martha Stewart Living e uma sucessão de outras focadas em temas de jardinagem, maternidade, cozinha, etc. Em 1999, a sua empresa foi cotada em Wall Street, fazendo dela a primeira mulher norte-americana bilionária vinda do nada.

Porém, não foram precisos meia dúzia de anos para Martha Stewart cair do topo do reinado, quando foi apanhada no meio de uma investigação de abuso de informação privilegiada — vendeu ações que detinha da empresa farmacêutica de um amigo na mesma altura em que este soube que o medicamento que queria comercializar não seria aprovado. Ele admitiu ter avisado outros familiares, mas não Stewart. Acabou presa durante cinco meses, viu-se obrigada a deixar o cargo de CEO do império com o próprio nome, foi enxovalhada pelos tabloides e perdeu milhões.

O mais impressionante é que não saiu da prisão envergonhada — aliás, efetivamente na saída envergou um poncho feito por uma das reclusas para todas as câmaras filmarem e fotografarem. A partir daí, usou inúmeras vezes como exemplo a experiência que a terá tornado mais humilde, mas seguiram-se uma série de programas de televisão que não correram bem. A imagem e a marca não recuperaram, Martha Stewart tornou-se irrelevante e pouco credível.

Até ao dia em que, em algum momento estapafúrdio, alguém teve a ideia de a convidar para fazer um roast a Justin Bieber no canal Comedy Central e, no segundo momento estapafúrdio desta reviravolta, Martha Stewart aceitou. O certo é que a sua participação foi um sucesso, revelando um lado sarcástico, perspicaz e com um sentido de humor que poucos conheciam. Nesse dia, começou também uma amizade improvável com Snoop Dogg, com quem fez dezenas de colaborações desde então.

Tem uma comunidade de seguidores fiéis nas redes sociais — ela que foi pioneira a ditar tendências, a vender uma ilusão perfeita que todos queriam alcançar, ou seja, o mesmo que uma influenciadora digital de hoje —, foi capa da revista Sports Ilustrated e continua a vistoriar cada plantação do seu jardim — e a ser uma controladora implacável com os seus funcionários.

Não é certo que fiquemos a gostar da pessoa, mas é inegável quão extraordinária é a sua jornada e, por isso, merece toda a admiração. Através de fotos, vídeos, passagens do diário na prisão, cartas e inúmeros testemunhos, Martha é uma viagem cativante sobre uma vida extraordinária cheia de imprevistos pelo caminho. Mas como ela própria — a antiga perseguidora do “perfeitamente perfeito” — já percebeu aos 83 anos: “Imperfeição é algo com que podemos lidar”.