Cobeligerância. Desde 24 de fevereiro de 2022, data em que a Rússia invadiu a Ucrânia, houve sempre a possibilidade de tropas de outros países entrarem no conflito. Especulou-se que os militares ocidentais poderiam lutar contra os russos em território ucraniano, hipótese que até foi admitida por França. Mas terá sido o Kremlin a tomar a iniciativa — segundo indicam os serviços secretos do Ocidente, decidiu chamar soldados da Coreia do Norte para se juntarem ao seu esforço de guerra.
A ser verdade, o conflito ganha uma nova dimensão. Poderão ser mais de 10 mil soldados norte-coreanos a lutar ao lado dos russos até dezembro e, perante essa realidade, acontece algo inédito: há tropas de Pyongyang na Europa. Isso criará dificuldades às forças de Kiev e também representa um sério risco para a arquitetura securitária do espaço euroatlântico. O secretário-geral da NATO, Mark Rutte, e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, encaram esta movimentação como uma “escalada significativa” e uma “ameaça muito séria à segurança da Europa e à paz no mundo”, assim como uma “expansão global” do conflito.
Não é apenas a NATO ou a UE que estão apreensivas. A cooperação militar entre Moscovo e Pyongyang gera receios igualmente à Coreia do Sul. Inimigas desde 1953, as duas Coreias nunca se reconciliaram e a situação continua bastante tensa. Foram, aliás, os serviços de informações de Seul, sempre atentos ao que se passa do outro lado do paralelo 38, que deram inicialmente o alerta para o envio de contingentes norte-coreanos para a Europa. Do lado sul-coreano, talvez a maior preocupação reside em saber o que é que a Coreia do Norte vai receber em troca do apoio à Rússia.
País com o estatuto de pária na comunidade internacional, a Coreia do Norte ganha um poderoso aliado e arranja uma maneira de contornar o isolamento. Já a Rússia, aumenta o número de tropas à sua disposição na guerra contra a Ucrânia, solidificando, pelo meio, a aliança anti-Ocidente, de que também faz parte o Irão e, ainda que de forma tácita, a China.
10 mil homens, um batalhão do Esquadrão Tempestade e “carne para canhão”: a entrada da Coreia do Norte na guerra
Há vários meses que a dinâmica na guerra na Ucrânia se tem mantido inalterável. A Rússia está na ofensiva e vai conquistando algumas aldeias, obrigando as tropas ucranianas a colocarem-se na defensiva e a conter os danos. À exceção da incursão ucraniana à região russa de Kursk em meados de agosto, tem-se assistido a uma verdadeira guerra de atrito, longe de estar resolvida militarmente. No campo diplomático, não há solução à vista, ainda que a vitória do candidato republicano, Donald Trump, nas eleições presidenciais do próximo dia 5 de novembro, possa mudar radicalmente a situação.
A chegada de novas tropas ao campo de batalha pode ser, assim, um importante trunfo para a Rússia, para obter ganhos territoriais mais substanciais do aqueles que tem tido nos últimos meses. No melhor dos cenários e a médio prazo, permitir-lhe-á conquistar localidades como Chasiv Yar, Pokrovsk ou Kurakhove, que colocará o Kremlin mais próximo de um dos grande objetivos a que se propôs militarmente: controlar por completo as regiões de Donetsk e Lugansk.
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Para a Ucrânia, as forças norte-coreanas podem representar um “desafio significativo”, quer nas operações ofensivas, quer nas operações defensivas, admitiu um analista militar sul-coreano à revista Foreign Policy. “Dez mil homens que estão disponíveis para lutar podem fazer a diferença” no terreno, corrobora, à mesma publicação, Rob Lee, especialista no programa Foreign Policy Research Institute’s Eurasia.
Ainda não é claro para onde é que vão as forças norte-coreanas — se combaterão em território ucraniano ou se ajudarão a expulsar as tropas de Kiev na região russa de Kursk. Numa conferência de imprensa esta quarta-feira, o secretário da Defesa norte-americano, Lloyd Austin, adiantou que 10 mil soldados foram treinados no leste da Rússia e que alguns “já estão próximos da Ucrânia”. “Eles vestem uniformes russos e são-lhes providenciados equipamentos de guerra russos”, afirmou.
A Ucrânia deu mais detalhes esta quinta-feira. Segundo o líder do Centro no Combate à Desinformação, Andriy Kovalenko, militares norte-coreanos já estão presentes na região de Donetsk. Ainda não participaram em combates, mas o responsável antevê que isso acontecerá em breve. “Esses soldados norte-coreanos estarão em uniformes russos, com documentos russos, misturados com os calmucos e buriates [grupos étnicos russos com feições asiáticas]”, assinalou.
O secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, espera que as tropas ucranianas entrem “em combates” contra as norte-coreanas “nos próximos dias”. Esta quinta-feira, o chefe da diplomacia dos Estados Unidos assinalou que oito mil homens da Coreia do Norte estão perto de Kursk e declarou: “Se essas tropas combaterem ou apoiarem as operações de combate contra a Ucrânia, tornam-se alvos militares legítimos”.
Antony Blinken não clarificou se os norte-coreanos vão entrar na Ucrânia. Mesmo que até permaneçam em Kursk e não se envolvam em combates dentro do território ucraniano, a superioridade numérica resultante da chegada de soldados de Pyongyang àquela região russa pode levar a que sejam mobilizados mais militares de Kiev para a zona, enfraquecendo outras frentes, como no sul ou em Donetsk.
Sobre os planos que tem alegadamente em marcha, a Rússia não revela nenhum pormenor publicamente. No final da cimeira dos BRICS, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, frisou que, se houver tropas norte-coreanas ao lado das russas na Ucrânia, é uma “decisão soberana” de Moscovo. Esta quarta-feira, o embaixador russo na Organização das Nações Unidas (ONU), Vassily Nebenzia, rejeitou, contudo, que houvesse forças de Pyongyang na linha da frente.
Se em termos numéricos é certo que serão cerca de 10 mil soldados norte-coreanos (podendo, no futuro, ser mais), não é claro se serão tropas de elite e bem treinadas ou simples recrutas. A CNN Internacional sabe que Pyongyang enviou um batalhão de militares especializados em guerrilha urbana e operações de infiltração — da Storm Squad [Esquadrão Tempestade] — não sabendo precisar se vão para Kursk ou para território ucraniano.
Apesar deste batalhão especializado, a perceção que os serviços secretos ocidentais e sul-coreanos têm é que as tropas norte-coreanas não estão prontas para a dura realidade de uma guerra moderna. Lee Woong-gil, antigo membro das forças de elite norte-coreanas, contou à Associated Press que muitos são “demasiado jovens” e “não vão entender exatamente o que significa”: “Apenas vão considerar que é uma honra serem selecionados como aqueles que vão para a Rússia entre os muitos soldados norte-coreanos”.
A tese de que os soldados norte-coreanos serão apenas “carne para canhão” — e uma forma de a Rússia evitar baixas entre as suas tropas — tem sido divulgada principalmente pela Coreia do Sul. De acordo com o que avançou o líder da oposição sul-coreana Park Sun-won, as altas patentes militares russas acreditam que os “soldados norte-coreanos são saudáveis” e estão bem em termos físicos e psicológicos, mas não “entendem as táticas de guerra moderna, como ataques de drones”. O político assinalou ainda que os generais russos esperam “várias baixas entre os norte-coreanos”.
A mesma ideia foi transmitida por Joonkook Hwang, líder da missão da Coreia do Sul na Organização das Nações Unidas. “Como alvos militares legítimos, vão acabar como mera carne para canhão”, atirou, acrescentando que o alegado salário que os militares vão receber (dois mil dólares, cerca de 1.850 euros) vai “acabar no bolso” do líder Kim Jong-un. “O tratamento de Pyongyang dos seus soldados jovens, do seu próprio povo, nunca será esquecido.”
Para fazer face às eventuais baixas, a Coreia do Sul adianta que o regime de Kim Jong-un já isolou as famílias dos soldados que foram para a Rússia. A morte de alguns militares pode até incomodar a liderança norte-coreanas, mas existem “várias vantagens” para Pyongyang, como nota Darcie Draudt-Véjares, especialista em política coreana no Carnegie Endowment for International Peace: “É uma oportunidade valiosa para testar as suas capacidades militares em combates modernos”.
Com mais de 1,3 milhões de soldados em situação ativa, a Coreia do Norte possui, como escreve o New York Times, o quarto maior exército do mundo. Porém, devido ao seu isolamento, o regime norte-coreano não consegue medir o quão prontas estão as suas tropas para lutarem contra potenciais inimigos no cenário de uma guerra moderna — e o conflito na Ucrânia pode ser uma maneira de as testar.
O que recebe a Coreia do Norte em troca e a possível aliança Ucrânia-Coreia do Sul
Na ótica da Coreia do Sul, este ‘teste’ que a entrada de tropas norte-coreanas no conflito entre a Rússia e a Ucrânia pode representar é olhado com inquietude, como frisa Darcie Draudt-Véjares. A especialista realça que os militares de Pyongyang podem ganhar experiência no campo de batalha — e isso pode, no futuro, prejudicar a segurança interna sul-coreana.
Para além do ganho de capacidades militares, Seul alertou a comunidade internacional que é “muito provável” que a Coreia do Norte peça à Rússia tecnologia sofisticada para continuar a desenvolver o seu programa nuclear. De acordo com o que divulgou o ministro da Defesa sul-coreano, Kim Yong-hyun, o regime norte-coreano terá pedido informações a Moscovo sobre como desenvolver os seus mísseis balísticos intercontinentais, submarinos nucleares e satélites de reconhecimento.
Por tudo isto, Kim Yong-hyun avisou que a probabilidade de começar uma guerra na península da Coreia aumentou — uma prova que o conflito na Ucrânia já extravasou os limites geográficos da Europa. Questionado esta quinta-feira sobre se a Rússia está a ajudar a Coreia do Norte a desenvolver armas nucleares, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, não quis falar: “Não tenho essa informação. É informação especializada que se deve pedir ao Ministério da Defesa”.
No entanto, o responsável pela comunicação de Vladimir Putin reiterou que a Rússia continua “comprometida” ao acordo de assistência militar mútua entre os dois países, assinado em meados de junho. “Mantemo-nos comprometidos aos nossos interesses e a desenvolver relações com os nossos vizinhos. Isto não deve preocupar ninguém”, prosseguiu Dmitry Peskov, acrescentando que é um “direito soberano da Rússia e da Coreia do Norte desenvolver relações com Estados vizinhos”.
Esta sexta-feira, dia 1, a ministra dos Negócios Estrangeiros norte-coreana, Choe Son Hui, no início de uma reunião em Moscovo com o homólogo russo, Sergei Lavrov, disse mesmo que a Coreia do Norte estará ao lado da Rússia até à “vitória” na Ucrânia. “Não há dúvida de que, sob a sábia liderança do eminente Presidente russo, Vladimir Putin, o exército e o povo russos alcançarão uma grande vitória”, afirmou Choe Son Hui, segundo uma tradução russa das suas observações, durante uma reunião com Lavrov.
“Foram estabelecidos contactos muito estreitos entre os serviços militares e de segurança dos dois países. Isto permite resolver questões importantes para a segurança dos nossos cidadãos e dos vossos”, respondeu-lhe, o chefe da diplomacia russa, confirmando implicitamente aquilo que vem sido dito.
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Face ao risco do aprofundamento de relações entre Moscovo e Pyongyang, Seul está a ponderar enviar alguns especialistas militares para ajudar a Ucrânia a preparar-se para se defender das tropas norte-coreanas. Ao mesmo tempo, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, tem feito vários apelos à Coreia do Sul, para que o país envie armas e ajude Kiev na linha da frente.
Ainda que se tenha posicionado a favor da Ucrânia na guerra desencadeada pela Rússia, a Coreia do Sul nunca enviou armamento à Ucrânia. Mas as autoridades de Seul já admitiram que “não vão ficar paradas” ao ver tropas inimigas no campo de batalha — e ponderam agir. Por causa disso, Volodymyr Zelensky enviará um pedido de armamento aos sul-coreanos, ainda que não tenha garantida luz verde.
Simultaneamente, Volodymyr Zelensky também tem feito pressão junto ao Ocidente, criticando que os países ocidentais não tenham fornecido “nada” à Ucrânia para ajudar as suas tropas a combater os soldados norte-coreanos. “Putin está a avaliar a reação do Ocidente. Acredito que depois de todas as reações, Putin vai aumentar o contingente”, lamentou, atirando contra a falta de reação ocidental.
A NATO, a União Europeia e os Estados Unidos têm criticado duramente a entrada em cena de soldados norte-coreanos, mas ainda não tomaram nenhuma iniciativa concreta para reforçar o esforço de guerra ucraniano. Washington insiste apenas que as tropas de Kim Jong-un serão um “alvo legítimo” no campo de batalha e tem apelado a que Pyongyang volte atrás com a decisão.
É improvável que a Coreia do Norte ceda à pressão, devido às vantagens que pode obter na participação nesta guerra. Mas há um país que pode ter uma palavra a dizer: a China. De forma privada, os Estados Unidos estão a comunicar com Pequim para que tente travar que as tropas de Pyongyang entrem em combates contra os ucranianos. O motivo? Pequim tem sido, ao longo das últimas décadas, o grande aliado do regime de Kim Jong-un — e teme, segundo escreve o New York Times, perder a sua influência sob o país para Moscovo.
O conflito que esteve durante dois anos e meio centrado principalmente no leste da Ucrânia pode ganhar agora uma dimensão ainda mais global com o surgimento de novos protagonistas. Para além de já ser uma guerra implícita entre democracias e autocracias, a entrada da Coreia do Norte pode gerar implicações em todo o mundo, em particular no paralelo 38. O Presidente ucraniano já deixou mesmo um preocupante aviso: as tropas norte-coreanas na Europa pode representar o “primeiro passo para uma guerra global”.