Nota: Esta é o primeiro de dois artigos sobre a polarização da política americana
A polarização da política não é um fenómeno exclusivamente americano, já que vários países europeus assistiram, no século XXI, ao esvaziamento do centro e ao reforço dos extremos, e, em particular, da extrema-direita, que conseguiu chegar à governação ou, pelo menos, ganhar notoriedade mediática e representação parlamentar suficiente para influenciar a governação e para fazer alguns partidos de centro-direita inflectirem para a direita, ao adoptarem causas da extrema-direita com o propósito de tentar suster a fuga dos seus eleitores para esse lado do espectro político.
Porém, a polarização da política americana difere da polarização da política europeia num aspecto crucial: na Europa continental – mas não no Reino Unido, por razões que se discutirão adiante – o panorama político sempre foi heteróclito e mutável, com um mosaico de partidos distribuídos entre a extrema-esquerda e a extrema-direita a disputarem o voto popular. Ainda que alguns partidos entre o centro-direita e o centro-esquerda – aquilo que em Portugal costuma designar-se como “partidos do arco do poder” – possam ter dominado a política durante boa parte do tempo, Governo e oposição foram organizando-se, ao longo do tempo, em diversas configurações e mesmo os partidos exteriores ao arco do poder têm conseguido construir um espaço próprio e perdurar.
Já nos EUA, a mais antiga democracia moderna, a política tem estado, desde meados do século XIX, reduzida ao Partido Republicano (também conhecido como Grand Old Party, ou GOP), fundado em 1846, e ao Partido Democrata, fundado em 1828. Note-se que esta rivalidade, ainda que antiga, não é estática, uma vez que as ideologias e o eleitorado de um e de outro partido sofreram mudanças significativas ao longo da história. É certo que sempre existiram outros partidos nos EUA, mas a sua expressão eleitoral tem sido insignificante, com excepção do Partido do Povo (People’s Party), ou Partido Populista (Populist Party), uma facção “agrária” dos Democratas, que conquistou efémera popularidade em 1892-96 e logo declinou, sendo dissolvido em 1909. Enquanto na Europa a polarização da política é atenuada pela existência de meios de dissipação de tensões, devido às múltiplas possibilidades de arranjos entre os vários partidos e a uma longa tradição de diálogo e cedências mútuas, nos EUA assistimos, nos últimos anos, a um aumento consistente da animosidade e intransigência entre Republicanos e Democratas, tendo-se instalado um mecanismo de retroacção positiva, em que a radicalização de um partido produz uma radicalização de sentido inverso no outro, e assim sucessivamente.
Deserdaria a sua filha se ela se casasse com um Democrata?
Em Como morrem as democracias (How democracies die, 2018), um livro útil para compreender a presente situação da política americana, Steven Levitsky & Daniel Ziblatt mencionam uma “descoberta extraordinária” que dá, só por si, eloquente testemunho da intensificação da polarização da política e da sua repercussão em diversas facetas da vida em sociedade: quando, em 1960, se perguntou aos americanos “como se sentiriam se a filha ou o filho casasse com alguém que se identificasse com outro partido político, 4% de Democratas e 5% de Republicanos responderam que ficariam desagradados”; quando a pergunta foi repetida 50 anos depois, estas percentagens subiram para 33% e 49%, respectivamente (ver “Eu sou a Constituição!”: A ascensão do populismo e o declínio da democracia).
O que é mais inquietante é que bastou mais uma dúzia de anos para que a aversão ao matrimónio interpartidário sofresse um incremento apreciável: em 2022, 60% dos Democratas e 63% dos Republicanos responderam que ficariam desagradados se um filho ou filha se casasse com um apoiante do partido adversário. Esta oposição de princípio ao casamento interpartidário acaba por ter reflexos práticos: um inquérito de 2020 apurou que 79% dos casamentos se dão entre pessoas da mesma simpatia partidária e 21% são casamentos “mistos”. Quando se faz uma análise mais fina destes dados, o facciosismo matrimonial torna-se ainda mais evidente: a maioria dos casamentos “mistos” envolve pelo menos um parceiro que se identifica como “independente” – o que, na disfuncional e mórbida política americana, costuma significar, na prática, “eleitor não registado como Republicano ou Democrata” – e apenas 4% de todos os casamentos unem um eleitor registado no Partido Democrata e um eleitor registado no Partido Republicano. Para complementar este retrato de uma América desavinda, teria sido útil que o inquérito também tivesse apurado que percentagem dos casais Republicano-Democratas partilha o mesmo leito e que percentagem dorme em camas separadas.
Estes números são tanto mais reveladores quando se considera, em paralelo, a evolução positiva da atitude da sociedade americana face ao casamento inter-racial: em 1958, apenas 4% dos americanos aprovavam tal união; em 2021 esse número subira para 94%, segundo uma sondagem Gallup. Um inquérito de 2017 pelo Pew Research Center revelava tendência similar, ainda que menos expressiva, com percentagens de oposição do casamento inter-racial de 7% entre Democratas e de 16% entre Republicanos; em 2021, um inquérito da General Social Survey produziu resultados similares, com uma oposição de 4-6% entre Democratas e de 11-14% entre Republicanos.
Algo de análogo se passou com o casamento entre pessoas com religiões diferentes: nos casamentos anteriores a 1960, 81% correspondiam a pessoas com a mesma fé, 11% a uma pessoa de fé cristã e outra de outra religião e 5% a uma pessoa de fé cristã e outra sem filiação religiosa. Nos casamentos realizados em 2010-14, estes números eram, respectivamente, de 61%, 15% e 18%.
Ou seja, a sociedade americana, que, há pouco mais de meio século, estava dividida por rígidas barreiras raciais e religiosas, encara hoje com naturalidade o casamento entre pessoas de etnias e fés diferentes, mas, em contrapartida, está a erguer barreiras com base em convicções políticas.
A deriva das placas tectónicas americanas
No livro acima referido, Levitsky & Ziblatt atribuem a maior responsabilidade no extremar de posições à “marcha de 25 anos [do Partido Republicano] em direcção à direita, [que] foi possibilitada pelo esvaziamento do seu núcleo organizacional” e que se tornou mais nítida a partir da eleição de Barack Obama para o seu primeiro mandato: “Desde 2008 que o GOP se tem por vezes comportado como um partido anti-sistema no seu obstruccionismo, na sua hostilidade sectária e nas suas posições políticas extremistas” (ver também capítulo “Da Guerra Civil Americana a Donald Trump” em “Todos os brancos são racistas”: O wokismo na América).
A visão de Levitsky & Ziblatt foi confirmada por um estudo do Pew Research Center que avaliou a evolução do posicionamento ideológico dos membros do Congresso dos EUA, entre 1971-72 e 2021-22, numa escala que vai do extremo liberalismo (–1.00) ao extremo conservadorismo (+1.00), em função das suas votações, e apurou que, nesse período, o posicionamento médio dos Democratas se deslocou no sentido de um maior liberalismo em –0.06 no Senado e em –0.07 na Câmara dos Representantes (de –0.31 para –0.38), enquanto o posicionamento médio dos Republicanos se deslocou no sentido de um maior conservadorismo em +0.28 no Senado e em +0.25 na Câmara dos Representantes (de +0.25 para +0.50). Este estudo permitiu concluir que:
1) O Congresso se tornou, globalmente, mais conservador;
2) A deriva para a direita dos Republicanos para a direita foi muito mais pronunciada do que a dos Democratas para a esquerda;
3) Ao mesmo tempo que Republicanos se deslocaram para a direita e Democratas para a esquerda, não só o centro político se despovoou, como ambos os partidos se tornaram mais homogéneos, ou seja, os seus membros passaram a exibir menor amplitude de posições;
4) “A composição geográfica e demográfica de ambos os partidos alterou-se dramaticamente. Quase metade dos Republicanos da Câmara dos Representantes provêm hoje dos estados do Sul, enquanto quase metade dos Democratas da Câmara dos Representantes são afroamericanos, hispânicos ou asiáticos”.
Também a taxa de aprovação dos presidentes entre 1953 e o presente dá conta de uma crescente divergência entre Democratas e Republicanos:
- Eisenhower (R) 49% D, 88% R
- Kennedy (D) 84% D, 49% R
- Johnson (D) 70% D, 40% R
- Nixon (R) 34% D, 75% R
- Ford (R) 36% D, 67% R
- Carter (D) 57% D, 30% R
- Reagan (R) 31% D, 83% R
- G.H. Bush (R) 44% D, 82% R
- Clinton (D) 80% D, 27% R
- G.W. Bush (R) 23% D, 81% R
- Obama (D) 81% D, 14% R
- Trump (R) 06% D, 86% R
- Biden (D) 2021 86% D, 16% R
- Biden (D) 2024 61% D, 05% R
Nota: estas taxas de aprovação representam a média de todo o mandato (ou de ambos os mandatos, se for caso disso), com excepção de Biden, em que a avaliação diz respeito a dois instantes, em Janeiro de 2021 e Julho de 2024.
A comparação entre a viragem das décadas de 1950-60 e os anos mais recentes é reveladora: o Republicano Eisenhower recolhia quase 50% de aprovação entre os Democratas e vice-versa e o Democrata Kennedy recolhia quase 50% de aprovação entre os Republicanos, mas Trump apenas mereceu a aprovação de 6% dos Democratas e Biden apenas mereceu a aprovação de 5% dos Republicanos.
Uma sondagem da Fox News incidindo sobre avaliações negativas a Joe Biden, Donald Trump e Vladimir Putin, divulgada a 24.02.2022 (por coincidência, o dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia), revelava que, entre os eleitores Republicanos, a percentagem de apreciações negativas relativas a Biden superava a das apreciações negativas relativas a Putin.
A invasão da Ucrânia pela Rússia fez aumentar as avaliações negativas a Putin entre os Republicanos, mas, ainda assim, uma sondagem realizada pelo Vanderbilt Project on Unity & American Diversity, e divulgada em Abril de 2023, mostrava que 52% dos Republicanos que se identificam com o movimento MAGA (Make America Great Again), ou seja, o núcleo dos apoiantes irredutíveis de Trump, representando cerca de 18% dos eleitores americanos, entendiam que Putin seria melhor presidente dos EUA do que Biden. No cômputo geral da população americana, 19% afirmaram preferir Putin a Biden.
A visão que cada partido tem do outro também se tornou mais extrema. Se é expectável que os apoiantes de um partido tenham uma visão algo depreciativa dos apoiantes do partido adversário, já é preocupante o crescimento da proporção dos que têm uma opinião “muito desfavorável” do adversário: os Republicanos com opinião “muito desfavorável” sobre Democratas eram 21% em 1994 e eram 62% em 2022. Reciprocamente, os Democratas com opinião “muito desfavorável” sobre os Republicanos eram 17% em 1994 e eram 54% em 2022.
Esta evolução da opinião muito desfavorável é acompanhada pela rápida evolução dos traços de carácter negativos que os apoiantes de um partido associam aos apoiantes do partido adversário:
Evolução entre 2016-2019-2022
D que acham os R mais tacanhos 70% 75% 83%
R que acham os D mais tacanhos 52% 64% 69%
D que acham os R mais desonestos 42% 64%
R que acham os D mais desonestos 45% 72%
D que acham os R mais imorais 35% 47% 63%
R que acham os D mais imorais 47% 55% 72%
D que acham os R mais obtusos 33% 38% 52%
R que acham os D mais obtusos 32% 36% 51%
D que acham os R mais preguiçosos 18% 20% 26%
R que acham os D mais preguiçosos 46% 46% 62%
A fim de monitorizar “o estado da União”, o Vanderbilt Project on Unity & American Diversity criou o Vanderbilt Unity Index (VUI), que varia de 0 a 100 e combina cinco parâmetros – a taxa de aprovação do presidente, um indicador de extremismo ideológico, um indicador de confiança social, um indicador de polarização do Congresso e um indicador de manifestações e distúrbios com motivação política – e que atesta um declínio continuado do sentimento de unidade do povo americano entre 1981 (VUI = 68.0) e 2021 (VUI = 52.5).
Enquanto o sentimento de unidade se esvai, outro sentimento emerge para tomar o seu lugar: Levitsky & Ziblatt citam uma sondagem de 2016 que “descobriu que 49% de Republicanos e 55% de Democratas dizem que o outro partido lhes mete medo”, sendo estas percentagens ainda mais elevadas entre os que se dizem “politicamente engajados”, com 62% de Republicanos e 70% de Democratas a dizer “viver com medo do outro partido”.
Fabricando radicais: a escola, os media e a polarização
Para o afastamento entre Republicanos e Democratas também contribui o facto de, nos EUA, as franjas cristãs fundamentalistas, alarmadas com as ideias contrárias às Sagradas Escrituras que são promovidas no ensino público, estarem a recorrer cada vez mais ao ensino doméstico (“homeschooling”), que, no ano escolar 2020-21 foi frequentado por 3.7 milhões de alunos, representando 6.7% do total de crianças e jovens a frequentar o ensino básico e secundário. Nem todos os pais que optam pela educação doméstica por motivos religiosos, que surgem em 3.º lugar quando são chamados a indicar a principal justificação para tal opção – o motivo n.º 1 (com 25% das respostas) a ser invocado é a segurança, uma preocupação compreensível nos EUA, devido aos frequentes tiroteios em escolas, que estão associados ao culto das armas e à frouxa regulação das armas de fogo, duas causas queridas aos sectores mais conservadores. O motivo n.º 2 (14%) é a “má qualidade do ensino público”, um critério onde se confundem casos de efectiva má qualidade e a oposição ou relutância dos pais face às matérias leccionadas e à forma como são leccionadas.
Como seria de esperar, Republicanos e Democratas têm visões divergentes sobre o ensino doméstico e o ensino público: sobre os efeitos do segundo no estado da nação, 61% os Republicanos têm opinião negativa, partilhada por 26% dos Democratas. Clivagem similar ocorre na avaliação do Departamento de Educação (equivalente ao Ministério da Educação português), vista como negativa por 65% dos Republicanos e 30% dos Democratas, e na avaliação do papel dos sindicatos de professores do ensino público, com 60% de opiniões positivas pelos Democratas e 22% pelos Republicanos. 52% dos Republicanos entendem que o Governo federal se imiscui demasiado no ensino público, enquanto apenas 20% dos Democratas são dessa opinião. Sem surpresa, 44% dos Republicanos entendem que os pais deveriam ter mais a dizer sobre os curricula e o funcionamento das escolas, ideia que só é acolhida por 23% dos Democratas. As visões sobre as matérias leccionadas também divergem nitidamente entre Republicanos e Democratas quando estão em jogo temas como escravatura, identidade de género, educação sexual e posição dos EUA no concerto das nações (todos os dados acima citados provêm de um inquérito de opinião realizado em 2022 pelo Pew Research Center).
No ensaio Optimism (1903), Helen Keller defendeu que “o mais sublime resultado da educação é a tolerância. Em tempos, os homens lutaram e morreram pela sua fé; foram precisos séculos para lhes ensinar outro tipo de coragem – a coragem de reconhecer as fés dos seus irmãos e os seus direitos de consciência. A tolerância é o primeiro princípio da comunidade; é o espírito que apura o melhor do que todos os homens pensam. Nenhuma perda por cheias ou relâmpagos, nenhuma destruição de cidades e templos por forças hostis da natureza privou a humanidade de tantas nobres vidas e forças como as que a intolerância tem destruído”. O ensino público, ao proporcionar um substrato comum a todos os cidadãos, sem prejuízo da orientação providenciada em casa pela família e do livre arbítrio de cada jovem, é, com efeito, um poderoso agente promotor da tolerância, mas o ensino doméstico pode minar esse efeito agregador, sobretudo no caso de ser orientado por um ideário fundamentalista (seja ele cristão, woke, animalista ou de qualquer outra inspiração).
Passado mais de um século sobre a escrita de Optimism, o poder da escola para moldar as mentes esbateu-se acentuadamente e foi superado pelo dos media (os “tradicionais” e os do ciberespaço) e, desgraçadamente, a clivagem ideológica nos media é cada vez mais nítida e omnipresente. Como já foi referido no capítulo “Turbas e redes sociais”, em Donald Trump: A arte do ludíbrio na era digital, a crescente divergência entre Republicanos e Democratas é favorecida por os cidadãos escolherem, cada vez mais, rodear-se apenas de ideias com que sentem afinidade e ignorarem todas as outras fontes de informação e opinião. A clivagem na mundividência política corresponde a uma clivagem no consumo de media e as duas clivagens reforçam-se mutuamente, de forma que os espectadores habituais dos canais televisivos CNN e MSNBC e, em particular, dos “late night shows” de pendor liberal, são colocados perante uma realidade com poucos pontos de contacto com a que é mostrada nos canais televisivos Fox News e Newsmax, e que parece nem sequer dizer respeito ao mesmo planeta que é representado nos programas de activistas alt-right como Steve Bannon e de Alex Jones.
Posicionamento político: Preconceitos, percepções e realidade
Em Abril de 2012, num “town hall” em Palm City, Florida, o Republicano Allen West, então membro da Câmara dos Representantes, afirmou, peremptoriamente, que cerca de 78 a 81 Democratas na Câmara dos Representantes “são membros do Partido Comunista”; quando lhe foi pedido se poderia identificá-los, respondeu “é o chamado Congressional Progressive Caucus”.
O Congressional Progressive Caucus representa a tendência progressista dentro do Partido Democrata e as suas causas fundamentais são um sistema nacional de saúde que cubra toda a população, um salário mínimo que assegure condições básicas de subsistência (i.e., que ninguém com um emprego a tempo inteiro viva abaixo do limiar de subsistência), redução da despesa no sector da defesa, políticas de imigração que preservem a dignidade humana e tomada de medidas urgentes e efectivas de combate às alterações climáticas. É um programa que poderia ser subscrito – pelo menos como intenção – pelo PSD e pela maioria dos partidos europeus de centro e centro-direita. Na verdade, se os Democratas que hoje integram a Câmara dos Representantes e o Senado dos EUA fossem transplantados para o Parlamento Europeu e lhes fosse dado escolher onde se sentariam, é provável que a esmagadora maioria deles – com óbvias excepções como Bernie Sanders, Elizabeth Warren ou Alexandria Ocasio-Cortez – optasse pelas bancadas do Partido Popular Europeu (conservadores e democratas-cristãos) e do Renovar a Europa (liberais).
Porém, desde a eleição de Obama em 2008, a enviesada perspectiva de Allen West tem vindo a impregnar boa parte do Partido Republicano. Em Outubro de 2015, quando Bernie Sanders ainda era candidato nas eleições primárias do Partido Democrata, Trump referiu-se a ele como “um socialista-barra-comunista […] que irá cobrar-vos impostos de 90%; ele vai ficar-vos com tudo!”; em Setembro de 2020, num evento na Casa Branca, Trump avisou que “não andámos a combater a tirania no estrangeiro para, depois, deixarmos os marxistas [i.e. os Democratas] destruírem o nosso bem-amado país”. A retórica que identifica o Partido Democrata com o comunismo redobrou de intensidade desde que Kamala Harris se tornou na candidata Democrata à presidência, com Donald Trump e outros líderes Republicanos a rotulá-la repetidamente de “comunista” e “marxista”. De pouco servirão os esforços de Harris para tentar dissipar esta percepção – como fez num evento promovido pelo Economic Club of Pittsburgh, a 25.09.2024, em que afirmou “Sou uma capitalista. Acredito no mercado livre e justo” – pois, cada vez mais, os cidadãos “politicamente engajados” lêem o mundo a partir das suas bolhas mediáticas, que são impermeáveis a tudo o que não confirme os seus preconceitos.
Todavia, quando se pergunta aos eleitores Republicanos e Democratas o que realmente pensam do socialismo e do capitalismo, as respostas não coincidem com a retórica extremada no palco político: de acordo com uma sondagem de 2019 do Pew Research Center, a percentagem de impressões positivas sobre socialismo e capitalismo foi de 64% e 62% (respectivamente) entre os homens Democratas, de 65% e 50% (respectivamente) entre as mulheres Democratas, de 10% e 87% (respectivamente) entre os homens Republicanos, e de 20% e 68% entre as mulheres Republicanas. É de registar que, quando se decompõe as respostas por escalões etários, entre os Republicanos as posições extremam-se à medida que a idade aumenta, enquanto entre os Democratas os mais jovens são os mais radicais.
Interlúdio tragicómico: A América enquistada
Em Fevereiro de 2024, o programa humorístico Jimmy Kimmel Live levou a cabo uma “pequena experiência social”: em Greenville, South Carolina, na véspera das eleições primárias nesse estado, confrontou apoiantes de Donald Trump com declarações que foram apresentadas como tendo sido proferidas por Joe Biden. As reacções foram de repúdio e as declarações foram interpretadas como provas inequívocas da senilidade, falta de patriotismo ou falha de carácter pela parte de Biden. Porém, as declarações lidas às “cobaias” tinham, na verdade, sido feitas por Trump e quando a repórter, fingindo ter trocado as suas notas, revelava ao entrevistado o verdadeiro autor, de imediato o entrevistado invertia o seu discurso e passava a defender o mérito de tais declarações e a expressar concordância com elas.
[A “pequena experiência social” de Jimmy Kimmel começa aos 8:43:]
https://youtu.be/FAFbOK01uE4
A brincadeira do Jimmy Kimmel Live não tem, claro, qualquer pretensão de rigor sociológico nem cumpre as regras de representatividade dos inquéritos de opinião (logo à partida por não ter feito “experiência” análoga com eleitores Democratas), mas não deixa de ser sintomática de uma América não só dividida como enquistada, convicta da absoluta bondade das suas convicções e da malevolência dos adversários e resolutamente cerrada a factos, a argumentos e à mais elementar lógica.
Ao tomarmos consciência deste enquistamento mental, o riso que as desajeitadas piruetas argumentativas dos fãs de Trump possam suscitar no espectador dá rapidamente lugar a ruminações ominosas sobre o futuro de um país dilacerado por paixões sectárias.
A sereia-harpia que chama a América para o abismo
As várias sondagens acima apresentadas dão uma ideia genérica do afastamento progressivo entre o Republicano médio e o Democrata médio, mas não permitem, por si só, compreender a dinâmica que está a dilacerar a sociedade americana e que é “puxada” sobretudo pelos desassisados que se agitam e vociferam nos dois extremos do espectro político.
Sobre as mesquinhas, estultas e ridículas “guerras culturais” que, sendo de génese americana, estão a alastrar ao resto do mundo, e que opõem a esquerda woke, obcecada com identidade e “correcção política”, aos sectores ultraconservadores, que perante o tom cada vez mais atrevido e estridente das reivindicações wokistas, começam a ver, por todo o lado, ameaças tenebrosas aos pilares fundamentais da sociedade, já aqui se escreveu nos artigos O wokismo: A ideologia que nasceu na universidade para se espalhar pelo mundo, “Somos perfeitos sem ter de fazer nada”: O wokismo e as redes (ditas) sociais, “Todos os brancos são racistas”: O wokismo na América, Entre estátuas, palcos e penteados: O wokismo em Portugal, De Amanda Gorman a Lucky Luke: Correcção ou excesso?, Platão, Nietzsche e Mick Jagger: Entre guerras culturais e crises civilizacionais e Como a “identidade” se converte em dogma e cegueira).
Mas a polarização não se esgota nas “guerras culturais”: a alt-right americana tem-se revelado uma prolixa fabricante (ou pelo menos difusora) de teorias conspirativas de cariz político e social, que, mesmo não encontrando aceitação entre todos os Republicanos, têm contribuído para envenenar a atmosfera política e dificultar o diálogo entre Republicanos e Democratas.
Entre os agentes do frenesim conspiracionista da extrema-direita americana merece relevo a congressista Marjorie Taylor Greene, uma apoiante incondicional e estrepitosa de Donald Trump, que, por sua vez, tem manifestado por ela grande apreço (ver capítulo “MAGA Squad” em Donald Trump pelas palavras dos seus correligionários).
Eis alguns exemplos entre a torrente de tolices e infâmias que Greene tem produzido ou veiculado:
● Atribuiu os atentados de 11 de Setembro de 2001 ao Deep State, ou seja, a forças ocultas operando no interior do aparelho de Estado dos EUA.
● Atribuiu os fogos florestais que devastaram a Califórnia em 2018 a um “Jewish space laser”: as ignições teriam sido causadas por raios laser disparados por um satélite controlado por um executivo de um banco que é propriedade da poderosa família de banqueiros judeus Rothschild; nesta operação teria estado envolvido o (então) governador da Califórnia, Jerry Brown, e uma empresa que projecta produzir electricidade a partir de painéis fotovoltaicos no espaço.
● Atribuiu a Bill e Hillary Clinton o assassinato – disfarçado de “acidente ou “suicídio” – de dezenas de adversários políticos. Um deles terá sido o Democrata John F. Kennedy Jr., falecido na queda de um avião, em 1999, cuja eliminação terá tido como justificação o receio de Hillary de que JFK Jr. pudesse ser um rival temível na sua eleição para o cargo de senador pelo estado de Nova Iorque
● Defendeu que os assassínios em massa na escola básica de Sandy Hook, em Newton, Connecticut, em 2012 (27 vítimas mortais) e na escola secundária Stoneman Douglas, em Parkland, Florida, em 2018 (17 vítimas mortais), foram encenados. Em 2018, escreveu no Facebook: “Ouvi dizer que Nancy Pelosi tem vindo a dizer, várias vezes por mês, a Hillary Clinton, que ‘precisamos de mais um tiroteio numa escola’, de forma a persuadir a opinião pública a reclamar um controlo mais estrito sobre as armas de fogo”. Segundo esta teoria, os alunos que sobreviveram aos massacres e têm vindo a apelar à aprovação de legislação que imponha maior controle sobre as armas de fogo são actores a soldo de movimentos anti-armas (e de George Soros, que, no imaginário alt-right, é a face mais visível da megaconspiração global de banqueiros judeus). Numa ocasião, referiu-se a David Hogg, um dos sobreviventes do massacre em Parkland, assim: “Foi bem treinado. É como um cão”; noutra ocasião, qualificou Hogg como “um idiota” que “só diz aquilo que lhe mandam dizer”.
[Marjorie Taylor Greene perseguindo David Hogg, um dos sobreviventes do massacre em Parkland, pelas ruas de Washington DC:]
https://youtu.be/GM05FwyhHPA
● Produziu alegações similares sobre outros assassinatos em massa – nomeadamente num festival de música em Las Vegas, Nevada, em 2017 (60 vítimas mortais), e na mesquita de Christchurch, na Nova Zelândia, em 2019 (51 vítimas mortais). O objectivo principal destas “encenações” seria, mais uma vez, criar pressão para retirar aos cidadãos o sagrado direito a comprar um rifle semiautomático quase com a mesma facilidade com que se compra uma moto-serra ou uma máquina de cortar relva.
● É (ou foi) adepta das teorias conspirativas emanadas do enigmático QAnon, nomeadamente a de que existe uma cabala à escala planetária urdida por satanistas pedófilos, que controlam vários governos (incluindo o dos EUA) e instituições internacionais, e que usam pizzarias como fachada – o que levou a que tal teoria ficasse conhecida como “Pizzagate”. A dada altura, Greene chegou a dar crédito a uma ramificação da “Pizzagate” que crê na existência de um vídeo (que nunca veio à superfície) que mostra Hillary Clinton a praticar o assassínio ritual de uma criança. Um dos corolários desta teoria – que recicla elementos de propaganda anti-semítica já com mais de um século – é que Donald Trump é a única pessoa no mundo capaz de fazer frente à cabala satânico-pedófila. Consta que em 2021, numa reunião à porta fechada dos Republicanos da Câmara dos Representantes, Greene terá pedido desculpa aos colegas por ter disseminado teorias conspirativas emanadas do QAnon; a sinceridade deste pedido de desculpas é questionável, uma vez que, desde essa data, Greene tem continuado a difundir teorias conspirativas tão insensatas como as do QAnon.
● Espalhou o boato de que o assassínio em massa na escola básica Robb, em Uvalde, Texas, em 2022 (19 vítimas mortais) tinha sido perpetrado por um rapaz que tinha o hábito de se vestir de mulher, insinuando que este comportamento era sintomático de um desequilíbrio mental que também o teria impelido a perpetrar o massacre, e que teria sido fruto da doutrinação wokista sobre identidade de género.
● Na sua conta de Facebook foram publicados posts sugerindo a execução de figuras cimeiras do Partido Democrata; face às reacções indignadas, Greene rejeitou a sua autoria, alegando que as suas páginas nas redes sociais são geridas por várias pessoas.
[Caça aos porcos com Marjorie Taylor Greene (nota: trata-se de um vídeo oficial, não de uma sátira):]
https://youtu.be/XyKL2yNoWvM
● Em 2021-22, elogiou e apoiou Laura Loomer, uma “activista das redes sociais” conhecida pelo seu extremismo e pela difusão de teorias conspiracionistas de extrema-direita; mais recentemente manifestou reservas em relação a declarações racistas e sectárias de Loomer, mas, uma vez que a própria Greene tem feito declarações tão ofensivas quanto as de Loomer, é de crer que Greene esteja apenas com ciúmes por Loomer estar a ameaçar roubar o seu lugar de conspiracionista favorita de Donald Trump.
● Difundiu o boato de que Barack Obama praticaria, secretamente, a religião islâmica, o que explicaria o “facto” de, durante a sua presidência, os EUA terem escancarado as suas fronteiras à invasão de imigrantes islâmicos.
● Rejeita as provas científicas das alterações climáticas de origem antropogénica e da teoria da evolução.
Nem todos os Republicanos subscrevem as desassisadas proclamações de Greene, mas raros são os que exprimem publicamente reservas em relação a elas, menos ainda são os que dão mostras de se sentirem incomodados com a presença de Greene nas fileiras do Partido Republicano, e nenhum se opõe a que ela represente o partido no Congresso. E só esta aceitação bastaria como comprovativo de que o Partido Republicano deixou de possuir um quadro de referência moral.
Boletim meteorológico, versão alt-right
Uma das mais recentes e mais estólidas atoardas propagadas por Marjorie Taylor Greene envolveu o furacão Helene, que causou forte devastação (e cerca de 250 vítimas mortais) na costa Leste dos EUA no final de Setembro passado. Greene insinuou que o furacão foi gerado por “eles” (o Deep State? a Administração Biden? os judeus? George Soros? os Clinton?) e foi dirigido especificamente contra os eleitores Republicanos residentes em “swing states”, nomeadamente na North Carolina.
Num post na rede social X, a 03.10.2024, Greene escreveu: “Sim, eles são capazes de controlar a meteorologia. É ridículo que alguém minta e diga que isso não é possível”. As insinuações de Greene pertencem à órbita da tese promovida por Alex Jones, outro campeão das teorias conspirativas, que defende que o furacão Helene serviu para despovoar regiões ricas em lítio, necessário para fabricar as baterias que sustenta a mobilidade eléctrica (um ódio de estimação da alt-right). Uma variante desta teoria defende que Doug Emhoff, marido de Kamala Harris, estará envolvido neste negócio fabuloso. Estas atoardas encontraram eco em Donald Trump: “[A área mais afectada pelo furacão] é uma área predominantemente Republicana, por isso, há pessoas que dizem que eles [os Democratas? o Governo?] o fizeram por essa razão. Eu nem penso que eles sejam assim tão maldosos, mas provavelmente, talvez sejam” (comício em Juneau, Wisconsin, 06.10.2024). Deve sublinhar-se o sonso recurso à fórmula “há pessoas que dizem”, que Trump usa sistematicamente para dizer falsidades e infâmias sem se comprometer.
O canal noticioso de extrema-direita Real America’s Voice deu voz a comentadores que classificaram o furacão Helene como “uma operação de supressão de votantes promovida pelo Governo” (05.10.2024) e insinuaram que “o Governo descobriu como criar uma supertempestade capaz de destruir tudo o que encontre pelo caminho e apontou-a para o seu alvo designado, evitando o sul da Florida, que é onde os Democratas vivem” (07.10.2024).
Os arquivilões capazes de colocar a meteorologia ao serviço dos seus nefandos fins são um clássico da banda desenhada de super-heróis para adolescentes e, com este contributo da alt-right, a galeria de meteofacínoras enriquece-se com Joe Biden e Kamala Harris, que passam a ombrear com Weather Wizard e Ocean Master.
Na tempestade de desinformação que surgiu no rasto da tempestade real, Trump e várias figuras do Partido Republicano têm afirmado que o Governo federal tem estado, deliberadamente, a recusar auxílio a cidadãos americanos vítimas do Helene e a desviar esses recursos para prestar assistência aos imigrantes ilegais e até mesmo para alojá-los em hotéis de luxo. Embora o furacão Helene tenha tido o condão de colocar a criatividade dos “alt-righters” em ebulição e a estabelecer ligações causais rebuscadas e inverosímeis, nenhum deles se “lembrou” de mencionar a conexão mais óbvia: que o aumento da frequência de fenómenos meteorológicos extremos poderá ser consequência das alterações climáticas de origem antropogénica. Mas compreende-se: a extrema-direita nega a realidade das alterações climáticas e, quando admite que estas são reais, rejeita que sejam de origem humana ou que sejam prejudiciais.
No país de Deus
A relação dos EUA com a religião é bizarra pelos padrões do mundo ocidental. Os EUA arrogam-se o título de “God’s country” (“O país de Deus”), adoptaram “In God we trust” (“Confiamos em Deus”) como lema nacional e imprimem-no nas suas moedas e notas bancárias e os presidentes e muitos políticos terminam os seus discursos com a frase “God bless America” (“Deus abençoe a América”). Porém, ao contrário do que possa pensar-se, esta última tradição não remonta aos Pais Fundadores. Foi empregue pela primeira vez por Richard Nixon, numa alocução ao povo americano a partir da Sala Oval, a 30 de Abril de 1973, quando, abalado pelas escandalosas revelações do caso Watergate, tentava salvar a sua periclitante presidência: “Esta noite apelo a que rezem para me auxiliar em tudo o que faço nos dias [que restam] da minha presidência. Deus abençoe a América e cada um de vós”.
Este episódio de 1973 é revelador de como, nos EUA, religião tanto é devoção sincera, como santimónia, hipocrisia e mera bóia a que os biltres se agarram desesperadamente quando percebem que estão a naufragar. Rematar o discurso com “God bless America” não é, necessariamente, indicador de qualquer destas situações: a maior parte das vezes é, para os políticos americanos, numa forma expedita e descomprometida de exibir ao povo as suas credenciais de bons cristãos, sem as quais é impensável singrar-se na política americana.
A verdade é que, embora os EUA já tenham elegido (por duas vezes) um presidente afroamericano, tenham estado, em 2016, à beira de eleger uma mulher branca e tenham, no próximo dia 5 de Novembro, a possibilidade de quebrar outra barreira invisível ao eleger uma mulher onde se mescla sangue afroamericano e indiano, não é previsível que, num futuro próximo, venham a eleger um presidente que não seja cristão e não faça regularmente prova ostensiva da sua fé. Na actual composição do Congresso dos EUA, 88% dos seus membros identificam-se como cristãos, valor bem superior à percentagem de cristãos na população do país (63%). O domínio cristão é quase total entre os congressistas Republicanos – 99% – enquanto nos Democratas é de 76%; entre os congressistas Republicanos, 69% são protestantes, 25% são católicos e há representação residual de mórmons e cristão ortodoxos (dados do Pew Research Center).
Esta fortíssima presença do cristianismo no topo da política dos EUA é tanto mais impressionante por o artigo 6.º da Constituição dos EUA (conhecido como “No Religious Test Clause”) deixar claro que “nenhum teste religioso [i.e. um comprovativo formal de prática de uma certa religião ou da não-prática de uma certa religião] será alguma vez requerido como qualificação para o desempenho de qualquer cargo público nos EUA”, e de a Primeira Emenda estipular que “o Congresso não produzirá lei alguma respeitante ao estabelecimento de uma religião ou à proibição do seu livre exercício”.
Note-se que, durante muito tempo, o Artigo 6.º foi interpretado como dizendo apenas respeito a cargos no Estado federal, pelo que alguns estados impuseram aos seus funcionários a condição de professarem a fé cristã (e, nalguns casos, especificamente a fé protestante, vedando os cargos a católicos) e inscreveram essa obrigação nas respectivas constituições estaduais (por exemplo, a constituição da South Carolina prevê que “pessoa alguma que negue a existência de um Ente Supremo poderá desempenhar qualquer cargo no âmbito desta Constituição”, formulação que talvez abra o cargo a quem creia em Anubis, o deus egípcio com cabeça de chacal, ou no Super-Homem). Todavia, em 1961, essa limitação imposta por alguns estados foi declarada inválida pelo Supremo Tribunal de Justiça, e, se é verdade que muitos dos que tomam posse de cargos no Estado americano continuam a fazer o juramento de fidelidade sobre uma Bíblia, ninguém é obrigado a tal.
O amor que Trump tem expressado pelos cristãos evangélicos (ver capítulo “O Messias” em Donald Trump pelas suas próprias palavras) é compreensível: eles representam 14% da população dos EUA, mas foram responsáveis por 28% dos votos em Trump em 2020, e 76% de todos os evangélicos votaram em Trump (as estimativas para as eleições deste ano apontam para que Trump recolha 80% do voto evangélico). Trump é popular no eleitorado cristão branco que frequenta a missa regularmente – nas eleições de 2020, 71% votaram em Trump e 27% em Biden – mas os negros que frequentam a missa regularmente revelaram tendência inversa – 10% para Trump e 90% para Biden.
Os EUA são um caso peculiar no que respeita à religiosidade: enquanto a fé cristã recuava paulatinamente ao longo das décadas de 1960-80 em quase todos os países ocidentais, nos EUA ela manteve-se perto dos 90% até ao início da década de 1990, tendo então entrado num declínio que se acentuou dramaticamente a partir de 2007, fazendo com que caísse para 63% em 2021.
Apesar deste declínio abrupto, os EUA estão ainda longe dos níveis de ateísmo/agnosticismo da Suécia, Dinamarca, Noruega, República Checa, Estónia, Holanda, Reino Unido ou França, mas a rapidez da mudança poderá ter instilado nos crentes americanos um sentimento de inquietação, ao darem-se conta, subitamente, de estarem rodeados de pessoas que não partilham a sua crença e de a religião ter deixado de desempenhar um papel tão central na estruturação da sociedade e da vida quotidiana. Esta sensação de inquietação ou de desorientação tem vindo a transformar-se na percepção de que o cristianismo está a ser perseguido nos EUA, uma ideia que tem sido activamente promovida pela alt-right e por Donald Trump, que, claro, atribui a responsabilidade por essa perseguição aos Democratas (ver capítulo “O Messias” em Donald Trump pelas suas próprias palavras).
Em Abril de 2024, no seu programa GPS, na CNN, o analista político Fareed Zakaria defendeu que estas mudanças causaram um alinhamento da (des)crença religiosa com a convicção política, com muitos crentes a identificarem-se com o Partido Republicano e muitos não-crentes com o Partido Democrata. Zakaria sublinha que o aproveitamento pela direita da religião no combate político “não é exclusivo da América ou do cristianismo: podemos vê-lo no Brasil, em El Salvador, em Itália, em Israel, na Turquia e na Índia”. A dissolução das tradições e a perda de importância da religião criou na alma humana um vazio, que, adverte Zakaria, “é preenchido pelo populismo, pelo nacionalismo e pelo autoritarismo. Estas modernas forças políticas oferecem ao povo uma nova fé, uma nova causa, maior do que eles mesmos, a que podem consagrar-se. […] A sociedade moderna proporciona-nos riqueza, tecnologia e autonomia, mas, para muitos, estas coisas não podem preencher o espaço no coração antes ocupado por Deus e pela fé”.
Política, religião e nacionalismo cristão
A tese de Fareed Zakaria é confirmada por uma sondagem do Public Religion Research Institute (PRRI) e da Brookings Institution, divulgada em Abril de 2023, que concluiu que mais de metade dos Republicanos ou se identifica como nacionalista cristão (21%) ou simpatiza com o nacionalismo cristão (33%), o que foi apurado pela concordância com afirmações como “O Governo dos EUA deveria declarar que os EUA são uma nação cristã”, “A legislação deveria basear-se em valores cristãos”, “Se os EUA se afastarem das suas bases cristãs deixarão de ser um país”, “Ser cristão é uma parte importante de ser verdadeiramente americano” e “Deus chamou os cristãos para exercer domínio sobre todas as facetas da sociedade americana”. Já entre os Democratas, apenas 5% se declaram nacionalistas cristãos e apenas 10% dizem simpatizar com o conceito.
O nacionalismo cristão tem, segundo esta sondagem, maior representação junto dos cristãos evangélicos brancos (29% deles identificam-se como nacionalistas cristãos), junto de quem vai à missa pelo menos uma vez por semana (21%), e junto de quem tem como fonte de informação preferencial fontes de extrema-direita (38%) ou a Fox News (20%), contra apenas 7% entre quem confia genericamente nos media tradicionais como fonte de informação.
Uma sondagem realizada em Maio de 2022 pela Universidade do Maryland tinha revelado tendência similar: 61% dos Republicanos manifestaram-se a favor de que os EUA se declarassem como uma nação cristã, ideia partilhada por apenas 17% dos Democratas; 39% dos Republicanos e 83% dos Democratas opunham-se a tal declaração. Entre os Republicanos, o apoio à declaração dos EUA como nação cristã foi maior entre os que se identificaram como cristãos evangélicos (78%) do que entre os restantes (48%), e também foi maior entre a Geração Silenciosa, nascida em 1928-45 (71%), e os Baby Boomers, nascidos em 1946-64 (72%), do que entre os Millennials, nascidos em 1981-96 (51%), e a Geração Z, nascida em 1997-2012 (51%).
No que respeita à posição no espectro político, o nacionalismo cristão é mais popular na ala direita do Partido Republicano e tem na “incontornável” Marjorie Taylor Greene uma ardorosa paladina: “Se sente que o nacionalismo cristão é algo que deve temer-se, é porque andaram a mentir-lhe […] Na verdade, o nacionalismo cristão será o movimento que acabará com os tiroteios nas escolas, será o movimento que acabará com o crime nas nossas ruas, será o movimento que acabará com a imoralidade sexual e ensinará as crianças e as fará crescer em famílias tradicionais e lares acolhedores, será o movimento que protege a inocência das crianças e as educará para serem adultos responsáveis e se converterem em mamãs e papás de sucesso, que, por sua vez, quererão constituir a sua própria família. Será o movimento que, finalmente, fará algo em relação à nossa dívida [pública], porque esta é algo de que devemos envergonhar-nos, nunca deveria ter acontecido. Será o movimento que cuidará das comunidades desfeitas e perdidas […]. Portanto, enquanto a comunicação social vai mentir sobre vocês e vai rotular o nacionalismo cristão e, provavelmente, irá classificá-lo como ‘terrorismo doméstico’, eu vou dizer-vos desde já: os mentirosos são eles. Se existe algum terrorismo doméstico está na esquerda radical, eles é que são o terrorista doméstico. Podemos até dizer que os Democratas é que são o terrorista doméstico, porque são [os Democratas] que financiam [a esquerda radical] e esta foi quem incendiou as ruas das nossas cidades e causou motins em 2020. Portanto, se vamos pôr rótulos nas pessoas, devemos pôr os rótulos nos lugares correctos, não nos cristãos nem nas pessoas que amam o seu país e querem cuidar dele (podcast MTG Live, na plataforma Rumble, 03.06.2022). Greene não se limita a exaltar o nacionalismo cristão, tem apelado repetidamente à identificação do Partido Republicano com aquele movimento, como nesta ocasião no Turning Point USA Student Action Summit, em Tampa, Florida, a 03.07.2022: “Temos de ser o partido do nacionalismo cristão, eu sou uma cristã e digo-o com orgulho, devemos [nós, Republicanos] ser nacionalistas cristãos”.
A congressista Lauren Boebert não só partilha com Greene a ideologia de extrema-direita, o gosto por teorias conspirativas estólidas, a paixão por armas de fogo, a grosseria no trato e o tom insolente, acintoso e confrontacional, como também é uma promotora do nacionalismo cristão, como atesta este discurso no discurso no Cornerstone Christian Center, em Basalt, Colorado, a 25.06.2023: “É suposto que a Igreja dirija o Governo. Não é suposto que o Governo dirija a Igreja. Foi esta a intenção dos Pais Fundadores. Estou farta dessa treta da separação entre Igreja e Estado. Não está na Constituição, está numa carta fedorenta e o significado desta não é o que se diz por aí”.
Cabe aqui esclarecer que a “carta fedorenta” a que Boebert alude é, muito provavelmente, uma famosa carta de Thomas Jefferson, datada de 1 de Janeiro de 1812, em que afirma crer que “a religião é um assunto que apenas tem lugar entre o homem e o seu Deus” e interpreta a Primeira Emenda como “criando um muro de separação entre Estado e Igreja”. Boebert não está só no entendimento de que a carta de Jefferson está na raiz de um grave equívoco e tem servido para fins nefastos: em Novembro de 2023, o Republicano Mike Johnson, speaker da Câmara dos Representantes, defendeu que “A separação entre Estado e Igreja é um termo inadequado. Vem, claro, de uma frase numa carta escrita por Jefferson. Não está na Constituição”.
Os nacionalistas cristãos apresentam-se como os legítimos intérpretes das “verdadeiras” intenções dos Pais Fundadores e servem-se desse “conhecimento privilegiado” para tentar impor a sua ideologia. Nem todos os cristãos são da mesma opinião – é o caso de Tim Alberta, nascido e educado numa família evangélica e autor de The kingdom, the power, and the glory: American Evangelicals in an age of extremism (2023), que afirmou publicamente que o “nacionalismo cristão é apenas o casamento de má história com má religião” e acusou os nacionalistas cristãos de “reescrever os livros de história para convencer as pessoas de que, de facto, os EUA nasceram para ser uma nação cristã […] e de que os Pais Fundadores pretendiam que nós fôssemos mesmo uma nação explicitamente cristã, governada por homens cristãos europeus e que eles [os Pais Fundadores] ficariam agradados se as nossas instâncias governativas fossem capturadas por uma teocracia” (in Real Time with Bill Maher, 11.10.2024). As posições críticas de Alberta face a Donald Trump mereceram-lhe fortes críticas dos seus correligionários evangélicos, que o acusaram de estar “a ser cúmplice numa conspiração maligna […] para atingir o líder dos EUA consagrado por Deus”.
A directora executiva do Baptist Joint Committee for Religious Liberty, uma organização ligada às Igrejas Baptistas que, desde 1936, pugna pela liberdade religiosa nos EUA, também reagiu às pretensões no nacionalismo cristão e, em resposta ao podcast de Marjorie Taylor Greene de 03.06.2022, fez esta publicação no X/Twitter: “Nacionalismo cristão não é o mesmo que cristianismo. Avilta o cristianismo ao usá-lo como sucedâneo de um conjunto de posições políticas e prejudica o nosso discurso político ao presumir que alguém tem de subscrever um determinado conjunto de crenças cristãs para ser um ‘verdadeiro’ americano. Cristianismo e nacionalismo cristão nunca deveriam ser confundidos e há um número crescente de cristãos que estão a aderir à campanha Cristãos contra o Nacionalismo Cristão, com o intuito de denunciar esta ideologia nociva. Como cristãos e americanos, temos o dever de rejeitar o nacionalismo cristão e de pedir contas aos nossos líderes eleitos que o subscrevem”.
Por vezes, o nacionalismo cristão nem sequer parece conhecer ou compreender as Sagradas Escrituras que pretende impor como modelo de organização e funcionamento da sociedade: em Junho de 2022, numa conferência cristã, Lauren Boebert afirmou que Jesus “não tinha [rifles semiautomáticos] AR-15 suficientes para impedir que o seu Governo [o Império Romano] o matasse”. Ora, não só esta frase tem implícito um convite à sublevação armada contra o Governo federal, como passa ao lado do aspecto crucial da crucificação de Jesus, que é ela ter resultado de Jesus ter aceite ser humilhado, torturado e morto para redimir os pecados da Humanidade. Quando Pedro puxa da espada para fazer face aos que vêm prender Jesus, este ordena-lhe que a embainhe: “Ou pensas tu que eu não poderia rogar a meu Pai, e que ele não me mandaria agora mesmo mais de doze legiões de anjos?” (Mateus 26:53). Porém, a mente tacanha, belicosa e obcecada com armas da devota cristã Boebert interpreta a crucificação de Cristo como resultado da disparidade de “espadas” ou “rifles semiautomáticos” no campo de batalha.
“Deus está a enviar fortes sinais que dizem para nos arrependermos”
No presente estádio de polarização partidária e religiosa, o mais insignificante evento pode servir de pretexto para ondas de indignação, sobretudo na ala mais à direita do Partido Republicano. Foi o que aconteceu a 31 de Março de 2024, quando o Domingo de Páscoa coincidiu com o Dia Internacional da Visibilidade Transgénero. Este dia comemora-se nesta data desde 2009 – nos EUA foi reconhecido formalmente em 2021 – e, uma vez que a Páscoa é um feriado móvel, que oscila entre 22 de Março e 25 de Abril, acontece que, de vez em quando, o feriado e o dia internacional irão coincidir e nem o presidente dos EUA nem qualquer outra pessoa ou instância têm influência sobre essa coincidência. No resto do mundo, a coincidência ocorrida em 2024 foi aceite como tal, mas nos EUA suscitou reacções descabeladas e até apocalípticas entre figuras gradas do Partido Republicano e os seus fâmulos na Fox News.
● Mike Johnson, speaker da Câmara dos Representantes:
“A Casa Branca de Biden atraiçoou o princípio central da Páscoa, que é a ressurreição de Jesus Cristo. Banir a verdade e a tradição, ao mesmo tempo que se proclama o Domingo de Páscoa e o Dia Transgénero, é um ultraje e uma aberração” (rede social X, 30.03.2024).
● Marsha Blackburn, senadora (Tennessee) e que era, à data, apontada como possível escolha de Trump para vice-presidente:
“A esquerda está descaradamente a tentar erodir os valores da nossa nação e a substituí-los com a sua agenda radical woke” (rede social X, 30.03.2024)
“Todas as pessoas deveriam sentir-se insultadas por isto – o carácter intencional disto. A Páscoa é um feriado religioso, é um dia tão sagrado, em que todos nos encontramos junto à cruz […] Estão a insultar todos os cristãos que veneram este dia como sagrado” (Fox News, 31.03.2024).
● Lisa Boothe, comentadora residente da Fox News:
“Trata-se de um claro esforço para remover Deus da nossa sociedade e para substituir Deus por falsos deuses, e, nesta circunstância, é a comunidade trans. Eles querem, obviamente, que nos persignemos frente ao altar da comunidade trans, em vez de nos persignarmos perante Deus” (Fox News, 31.03.2024).
● Joey Jones, comentador residente da Fox News
“Penso que é um isco para terem oportunidade de pintar qualquer um que discorde como odioso, rancoroso e ressabiado” (Fox News, 31.03.2024)
● Laura Ingraham, apresentadora do programa The Ingraham Angle, na Fox News:
“Para mim, quero dizer, vou mesmo dizê-lo, é demoníaco” (Fox News, 01.04.2024).
● Donald Trump: ver capítulo “O Messias” em Donald Trump pelas suas próprias palavras.
● Donald Trump Jr.:
“Após a blasfémia deste fim-de-semana, talvez tenhamos recebido um sinal do próprio Deus. O início do Easter Egg Roll na Casa Branca [um evento destinado a crianças que se realiza todos os Domingos de Páscoa nos jardins da Casa Branca] foi adiado devido a uma trovoada. Não sei, malta, talvez seja o que é, o dilúvio outra vez, ah, um meteoro em 2025, se Joe Biden ‘vence’ outra vez esta [eleição] por meio de fraude, está visto. Mas, no ponto a que chegámos, talvez o mereçamos!” (Triggered with Don Jr, podcast na plataforma Rumble, 02.04.2024, repetindo argumentação expendida umas horas antes na rede social X por Wendell Husebø, colaborador do website noticioso de extrema-direita Breitbart).
● Marjorie Taylor Greene:
“Deus está a enviar fortes sinais que dizem para nos arrependermos. Tremores de terra e eclipses e muitas mais coisas por vir. Rezo para que este país O ouça” (rede social X, 05.04.2024, após um sismo ter sido sentido em Nova Iorque e de estar previsto um eclipse solar, visível em parte dos EUA, para três dias depois).
Esta última advertência entra em flagrante contradição com a ideia, também disseminada por Greene, de que os malévolos Democratas têm poder para criar calamidades naturais e lançá-las sobre os Republicanos. No que ficamos? As calamidades naturais são actos de Deus, destinados a reconduzir os ímpios ao caminho correcto, ou actos do Demo (ou dos Democratas), que tomam como alvo os justos?