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Bloco e Livre já têm caderno de encargos "mínimos" para Lisboa, PS decide candidatura até ao fim do ano

Bloco e Livre têm exigências focadas na Habitação e edifícios públicos. Bloquistas colam PS ao Orçamento do PSD, mas continuam abertos a convergências. Comunistas criticam "falsas unidades".

Mariana Lima Cunha
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Tudo parecia bem encaminhado para a formação de uma coligação anti-Moedas em Lisboa, mas a esquerda começa a encontrar alguns obstáculos no seu caminho. No Bloco de Esquerda, os termos “mínimos” para um acordo estão definidos, embora o partido se impaciente à espera de sinais do PS nesse sentido — e enfrente algumas críticas internas a esse propósito. O Livre também já tem um caderno de encargos desenhado e avisa: ou os partidos se entendem ou a cidade “continuará parada”. Já no PS a ordem é para ter calma e não dar já início a conversas formais com os outros partidos, prometendo-se que haverá decisões fechadas até ao fim do ano.

Em Lisboa, palco maior para possíveis coligações alargadas, vive-se aliás a dificuldade de fundo da esquerda em acertar agulhas em tempos de oposição. Os partidos têm ideias diferentes: os socialistas não gostaram de ver os hipotéticos parceiros do lado a falar publicamente em convergências e negociações a vários níveis (desde logo, autárquicos e presidenciais) e estão, até ver, fechados em copas; os bloquistas veem sinais positivos de convergência no Parlamento e nas ruas e, apesar de acusarem o PS de escolher não ser alternativa ao PSD, continuam dispostos a conversar em nome de bens maiores (como derrotar Carlos Moedas); e os comunistas continuam muito críticos do PS e afastados do resto da esquerda — e nos corredores queixam-se de um isolamento supostamente provocado pelos partidos vizinhos.

No Bloco de Esquerda, o fim de semana de conferência nacional serviu, em grande parte, precisamente para discutir as questões das convergências à esquerda — nas quais o partido tem insistido desde o fim da governação de António Costa — com Lisboa no centro do furacão. Para já, os pontos essenciais que para os bloquistas teriam de constar de um acordo têm, sem surpresas, a ver com Habitação.

Estas medidas “mínimas” passam por suspender o Plano Diretor Municipal que vigora desde 2012, quando Manuel Salgado ainda era vereador; reduzir o alojamento local para 5% na cidade (uma intenção que consta da nova Carta Municipal de Habitação, um documento estratégico sem força de lei); acabar com as parcerias público-privadas na Habitação; criar “milhares de casas” de arrendamento acessível 100% público; e impor uma quota de 25% da nova construção dos promotores privados para habitação pública (proposta que também consta da Carta), explicam fontes do partido.

O caderno de encargos do Livre também vai ganhando forma. Ao Observador, o porta-voz Rui Tavares frisa que os partidos de esquerda já fizeram um “diagnóstico comum” — a cidade “precisa urgentemente de mudança” — e que está agora ao nível das estruturas locais a responsabilidade de começar a construir um programa partilhado.

Para o partido, nesse programa terão impreterivelmente de constar medidas como um indicador de pressão turística por bairros e freguesias, para travar a “monocultura” de estabelecimentos em diferentes zonas de Lisboa; áreas de abrandamento da velocidade para os carros; e a conversão de edifícios públicos para fins sociais e educacionais, como no caso da Praça do Comércio, onde deixarão de estar instalados os edifícios do Governo e o Livre teme que os espaços venham a ser cedidos a “hotéis de charme”. “Corremos o risco de um património que merecia ser da Humanidade poder vir a ser cedido a hotéis de charme e continuar sonegado à população. Temos uma oportunidade única para mudar isso”, frisa Rui Tavares.

A dúvida passa por saber se os socialistas alinharão nestes “mínimos”, quando mesmo dentro do Bloco se recorda que boa parte destas medidas se encontrariam em contramão com as medidas que as governações socialistas da CML foram adotando. Durante a conferência nacional bloquista sucederam-se os alertas, com o fundador Francisco Louçã a lembrar a memória do socialista Jorge Sampaio, protagonista dos primeiros acordos à esquerda na autarquia de Lisboa, e a pressionar: “Talvez seja mais difícil acordar um programa confiável e forte do que passar por um buraco da agulha, mas não somos de desistir”.

Dentro do partido, confirma-se que a ideia de base é “apostar tudo na Habitação” (noutros pilares, o Bloco será — e terá de ser — mais flexível), a área em que se admite que as governações anteriores também foram “um fracasso”. Quanto à vontade do PS, o partido está às escuras — o que existe são apenas declarações públicas de boa vontade feitas por dirigentes socialistas — e teme que a demora em fazer uma prova de força coletiva à esquerda vá abrindo campo a Moedas.

Para o partido de Mariana Mortágua, o presidente da Câmara de Lisboa tem adotado uma retórica mais “agressiva e populista” do que Luís Montenegro, o que abriria espaço para uma polarização significativa em Lisboa — e em Lisboa, como no país, o Bloco continua a acreditar que deve defender a derrota de um “bloco de direita”, sempre que possível por um bloco da esquerda unida.

No partido, há quem alimente a esperança de que a nova liderança de Pedro Nuno Santos (que chegou a ser responsável pela pasta da Habitação no Governo) esteja atualmente disponível para tomar atitudes mais drásticas quanto ao alojamento local ou à “turistificação” das cidades. Até porque a própria direção socialista tem vindo a admitir que o PS devia ter começado a tomar medidas mais cedo para contrariar a crise da Habitação. E o Bloco tem alguma fé em que o mea culpa de Pedro Nuno resulte na hipótese de trabalhar num programa comum.

Mas a resposta do PS não virá tão cedo. Na direção socialista recorda-se que a “trama orçamental” em que os socialistas estiveram absorvidos durante meses ainda agora acabou, pelo que o processo autárquico ainda durará “semanas” a arrancar verdadeiramente. As decisões centrais, com a candidatura a Lisboa à cabeça, ficarão fechadas “este ano”, arruma outro dirigente.

A nível local, explica-se que as indicações sobre este tema que virão de cima: “Tive uma reunião com Pedro Nuno Santos enquanto presidente de federação e esses contactos [a propósito de uma candidatura alargada a mais partidos] estão a passar diretamente por ele”, explica ao Observador o autarca de Loures e presidente da federação de Lisboa do PS, Ricardo Leão. E aponta para o mesmo prazo máximo para ter o assunto fechado: “Em dezembro queremos apresentar todos os candidatos da federação de Lisboa”.

Bloco vê “solidariedade” na esquerda. Oposição interna extingue plataforma

O processo lisboeta é a prova de que o mantra que o Bloco foi adotando nas últimas semanas veio para ficar: “Uma coisa é a linha de política geral do Bloco”, que é “crítica” quanto ao posicionamento do PS no Orçamento do Estado e leva o partido a concluir que o PS se coloca de fora da construção de alternativas ao PSD; caso diferente é a vontade do Bloco de continuar a querer impedir “governações à direita”, incluindo a nível autárquico. Se os bloquistas aproveitam a viabilização orçamental para se distanciarem e colocarem PS — o PS de Pedro Nuno Santos, que chegou a ser visto como uma ameaça eleitoral significativa por se colocar mais à esquerda do que António Costa — e PSD no mesmo saco, no plano autárquico abre-se uma exceção.

E no Bloco puxa-se mesmo por algum otimismo no que toca nas relações e convergências à esquerda. Há quem dê, no partido, exemplos como a “grande solidariedade” que se constata entre as bancadas à esquerda no “combate à extrema-direita” e no apoio a intervenções dos diferentes partidos contra o Chega: “Generalizou-se o apoio entre as bancadas” durante esses confrontos. Também houve outros momentos de concertação, como no voto em memória de Amílcar Cabral.

No entanto, não é que esse otimismo se estenda a todo o partido. Durante a conferência nacional, um documento alternativo ao que acabou por ser aprovado por grande maioria, e que prometia abertura para uma coligação alargada em Lisboa, lamentava o “declínio” do Bloco e acusava a direção de promover um estilo de liderança centralista e de ter permitido que o Bloco se diluísse na defesa de movimentos sociais. A associação ao PS, assim como a insistência nas convergências à esquerda, é a outra crítica recorrente dos bloquistas que não se identificam com a atual direção.

“A conferência nacional tratou de abrir o Bloco a coligações autárquicas com o PS. Para consumo interno, tratou de retirar a centralidade do trabalho da linha tática. Agora a centralidade vai para os outros movimentos sociais. Está cada vez mais esquerda fofinha”, ironiza, em conversa com o Observador, um crítico.

As divergências agudizaram-se e acabaram por resultar, durante a última semana, na extinção da corrente interna crítica mais representativa (ainda que claramente minoritária) no interior do Bloco. No seu último plenário, a Convergência, plataforma que reunia os críticos mais conhecidos da direção bloquista, acabou enquanto plataforma formal — a ideia dos seus membros, confirmou o Observador, será fundar uma nova associação, independente do Bloco, com “iniciativa política e núcleos políticos próprios”, em protesto contra a “hipercentralização” e “exclusão total de quem tem posições críticas” que se viverá no Bloco.

Comunistas atacam “diluição da esquerda”

Com a direção do Bloco e do Livre viradas para convergências à esquerda e o PS focado num processo de reorientação pós-Orçamento, resta o PCP, que continua a jurar que não quer entrar nestas contas. Em Lisboa, a primeira prova do algodão para a esquerda na oposição, os comunistas apressaram-se a apresentar candidatura própria — do veterano João Ferreira — e, sobre a autarquia como sobre o país, não se cansaram de apontar semelhanças entre as governações de PS e PSD, ainda para mais com os socialistas a viabilizarem o Orçamento do Estado.

Dentro do partido, a ideia de ‘casar’ a esquerda nas frentes eleitorais em que isso for possível é arrasada. Em Lisboa, recorda-se que Fernando Medina e António Costa também protagonizaram “executivos de liberalização, privatização, para tornar Lisboa uma cidade apetecível para os grandes grupos económicos e a turistificação”, “escorraçando” os habitantes. “Não tivemos grande diferença com Moedas, é diferença na conversa”, atira uma fonte do partido. Ou seja, os comunistas dizem não ter “interesse em criar uma ilusão” de que as políticas mudarão se ao PSD suceder o PS, criticando pelo meio o Bloco por ter chegado a aceitar pelouros dos socialistas. “Para nós, as coligações constroem-se na prática, não nos gabinetes. Não vimos ser construída qualquer unidade de ação na prática”.

Mas a discordância vai além das fronteiras de Lisboa. No PCP, critica-se a ideia — defendida abertamente por BE e Livre — de que a esquerda deve, sempre que possível, construir alianças. “É a ideia de que devemos diluir a esquerda numa amálgama para que possa fazer frente à direita. Qualquer dia não temos esquerda”, alerta fonte comunista, criticando a tese da polarização por blocos e contra a extrema-direita à volta da qual partidos como o Bloco têm construído a sua narrativa política.

“O discurso em torno da extrema-direita centra o debate neles. Ao mesmo tempo reforçam o Chega”, avisa a mesma fonte, considerando que um discurso anti-Chega é “uma narrativa centrada no antiprojeto”, negativa, e que não é mobilizadora. “Uma coisa era o regime fascista, em que tínhamos todos de nos unir para conquistar a democracia”. Agora, o PCP não vê razões para essa “conversa mansa das unidades”, nem para frentes com mínimos denominadores comuns que provem apenas “que se é mais anti-Moedas do que os outros”.

Além disso, os comunistas queixam-se mesmo, nos corredores do partido, de que os outros vizinhos da esquerda tentam propositadamente provocar o seu “isolamento”, apresentando iniciativas sobre temas em que os comunistas estão sozinhos — da guerra na Ucrânia à posição de Portugal na UE — mas também comprando guerras sem resultado prático para polarizar o espetro político. Um dos exemplos é o alargamento do prazo para fazer um aborto, proposta que PS e BE apresentaram e que parece ter irritado os comunistas: “Este não é o momento de abrir a discussão, com uma maioria de direita no Parlamento”.

Dentro do PCP, não se vira as costas à hipótese de haver alguns entendimentos pós-eleitorais, já com um programa feito e e definido — mas diz-se que não a “falsas unidades”. Quanto ao resto da esquerda, vai definindo os mínimos para esse programa, na esperança de que seja possível, antes do fim do ano, acertar agulhas e tentar impedir Moedas de ganhar um segundo mandato.