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Vera Lagoa, a mulher que não tinha medo de provocar 

Foi a primeira locutora da RTP, mas não foi na televisão que criou a “personagem” que lhe deu fama. Vera Lagoa foi pioneira nos jornais, na política e na contestação. E foi provocadora até ao fim. 

Ana Sanlez
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Chamavam-lhe “cronista mundana”, num tempo em que até para ser mundano era preciso ter cautela para não desafiar o poder. E nas páginas no Diário Popular, nos final dos anos 1960, Vera Lagoa desafiava o poder.

A crónica chamava-se “Bisbilhotices”, saía três ou quatro vezes por semana, e tanto podia conter as “mundanidades” das festas de Lisboa como críticas, nem sempre veladas, ao regime de Salazar. Até ao 25 de Abril, Vera Lagoa era a figura da imprensa mais temida pelos homens do poder. Depois do 25 de abril, também.

A mulher que nasceu em 1917 em Moçambique como Maria Armanda Falcão marcou mais do que uma era na imprensa portuguesa. Na primeira, que começou em 1966, começou por ser um mistério, por ninguém saber a verdadeira identidade da pessoa que assinava as “Bisbilhotices”.

Foi Francisco Pinto Balsemão quem a recebeu. O fundador do grupo Impresa, à data administrador do Diário Popular, gostou da ousadia e viu potencial na proposta, mas impôs uma condição: a futura cronista teria de adotar outro nome, mais sonante e com personalidade. Foi batizada pelo escritor e amigo Luís de Sttau Monteiro. ‘Vera’ por ser verdadeira. ‘Lagoa’ porque era o vinho que acompanhava a refeição.

Em pouco tempo tornou-se um fenómeno de popularidade (chegou a ressuscitar, com grande sucesso, o concurso Miss Portugal), mas quando as “mundanidades” passaram a ser mal vistas, e associadas ao regime desmoronado com a Revolução, acabou a ser escorraçada do jornal onde, anos antes, tinha ido bater à porta com nada mais do que uma ideia para uma crónica de costumes sobre os bastidores da alta sociedade.

Foi Francisco Pinto Balsemão quem a recebeu. O fundador do grupo Impresa, à data administrador do Diário Popular, gostou da ousadia e viu potencial na proposta, mas impôs uma condição: a futura cronista teria de adotar outro nome, mais sonante e com personalidade.

E foi assim que nasceu Vera Lagoa, à mesa de um restaurante no Bairro Alto, batizada pelo escritor e amigo Luís de Sttau Monteiro. ‘Vera’ por ser verdadeira. ‘Lagoa’ porque era o vinho que acompanhava a refeição.

[Já saiu o primeiro episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. Se for assinante, já pode ouvir a série completa, de 5 episódios].

Para trás, quase aos 50 anos, ficava Maria Armanda Falcão, a primeira filha de Beatriz Coelho e de Armando Pires Falcão, major do Exército que, em 1931, seria demitido e deportado por uma tentativa de golpe contra o Governo da ditadura.

“O meu pai foi um homem que esteve sempre do outro lado, nunca com o poder”, começaria por dizer, muitos anos mais tarde, numa entrevista de vida à RTP. Para depois rematar: “Como eu”.

Da campanha de Delgado ao despedimento da RTP

Quando Maria Armanda nasceu, no dia de Natal de 1917, o pai ainda era governador da ilha de Moçambique. Só muitos anos mais tarde, depois da deportação, é que viria a miséria e o vício do jogo.

Até muito depois da morte do pai, Maria Armanda lutou pela reintegração do pai no Exército, de onde foi expulso sem nunca ter ido a julgamento. Perdeu a conta aos requerimentos que apresentou, e que, invariavelmente, eram recusados. Até ao dia em que, depois do 25 de Abril, recebeu o telefonema que há anos queria ouvir. “Pede agora, que vai ser deferido”, disse-lhe um amigo bem colocado. No dia 1 de março de 1979, mais de 30 anos depois de morrer, o major Armando Pires Falcão foi finalmente reintegrado no exército “por motivos políticos”. E a filha dele deu por encerrada uma missão que lhe tomou grande parte da vida adulta.

Quando se tornou Vera Lagoa, Maria Armanda Falcão já tinha então 49 anos e um filho adulto. Foi uma espécie de “renascimento” tardio, até a própria o considerava. Na vida que deixou para trás, a profissão que ostentava com orgulho era a de secretária.

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Gabava-se de ser rápida e eficiente. Começou no Arsenal da Marinha, com apenas 16 anos, mas foi como secretária de Humberto Delgado, durante a mais célebre campanha eleitoral do Estado Novo, que culminou com a derrota do “general sem medo”, que Maria Armanda Falcão se destacou.

O trabalho começou e acabou em 1958, durou apenas poucas semanas, mas, para ela, seria sempre uma medalha de honra, que lhe valeria até um interrogatório da PIDE. E o mais curioso é que, no início, Maria Armanda nem sequer gostava do candidato à presidência da República, achava que, como tinha vindo de dentro do regime de Salazar, só podia estar “feito” com a ditadura. Mudou de opinião no dia em que o viu ser recebido, em verdadeira apoteose, à chegada à estação de Santa Apolónia, depois de um comício no Porto.

A polícia política do Estado Novo tinha atravessado tábuas nas portas da estação, para que as pessoas que ali tinham ido aplaudir o general Humberto Delgado caíssem. Maria Armanda foi uma das inúmeras pessoas que ficaram estendidas no chão. Mas, quando se conseguiu levantar, com as pernas feridas, e se apercebeu da brutalidade com que a polícia estava a atuar na receção ao candidato da oposição, achou que tinha de fazer alguma coisa. E foi nesse mesmo dia que se juntou à campanha.

Nesta altura, os meios em que se movia eram alvo de desconfiança por parte da PIDE. Maria Armanda era amiga dos artistas, dos escritores, dos boémios. E, muito pior do que isso, dos comunistas. Montou uma espécie de centro de atividades subversivas na casa onde morava, no número 8 da Rua das Águas Livres, em Lisboa, e chegou a esconder amigos e desconhecidos perseguidos pelo regime no apartamento.

Fora dele, em toda a cidade, era conhecida como uma das mulheres mais bonitas de Lisboa — se bem que, a própria tenha feito sempre questão de dizer que só muito tardiamente tomou consciência dessa beleza e de garantir que, se lhe tivesse cabido algum título, seria o da “segunda mulher mais bonita de Lisboa”. O primeiro lugar do pódio, lembrou várias vezes ao longo da vida, estava reservado para uma das melhores amigas, com quem costumava descer o Chiado de braço dado: Natália Correia.

Ninguém terá estranhado quando, em 1956, a bonita e fotogénica Maria Armanda Falcão foi escolhida para dar rosto a um projeto que haveria de mudar o muito atrasado Portugal: a televisão.

Também neste caso, foi ela própria quem bateu à porta de Camilo Mendonça, o engenheiro agrónomo de 33 anos que o Governo tinha nomeado para a nova Rádio e Televisão de Portugal. Quando o presidente da RTP lhe perguntou que experiência tinha ela para a função, Maria Armanda respondeu com insolência: tinha exatamente a mesma experiência que ele — nenhuma. Mesmo assim (ou por isso mesmo), conseguiu o lugar. Pintou o cabelo de loiro, deixou o trabalho de secretária, e no dia 4 de setembro de 1956, tornou-se a primeira locutora da RTP, ao lado de Raúl Feio.

Nessa fase, as emissões eram apenas experimentais e gravadas ao vivo e com público na Feira Popular de Lisboa, na altura no lugar onde viria a ser construída a Fundação Calouste Gulbenkian. Quando, seis meses depois, arrancaram as emissões regulares, Maria Armanda Falcão já não estava na RTP. Escolheu desafiar o poder e não se despedir da forma estipulada, com um “se Deus quiser” — e acabou por ser dispensada ao fim de apenas um mês. O motivo: excesso de personalidade.

Três casamentos e centenas de idas a tribunal

Fez sempre questão de dizer o que pensava e de fazer o que bem entendia. Não só publicamente mas também — ou sobretudo — na vida íntima.

Maria Armanda Falcão, que terá sido uma das primeiras mulheres a usar biquíni em Portugal, casou três vezes. Aos 20 anos, aos 40 e aos 60. Do primeiro casamento, com Francisco Fiúza, resultou um filho, o único, e um divórcio, amigável. No total, passaram pouco mais de um ano juntos e ela até foi madrinha do segundo casamento do ex-marido.

Mas nenhuma relação a marcaria tanto como a que levou ao segundo enlace. José Manuel Tengarrinha, jornalista, professor universitário, investigador e militante histórico do PCP, foi o amor da vida de Maria Armanda Falcão. Um casamento marcado pela pobreza, pela clandestinidade, pela luta contra o regime e por um final tão inesperado quanto atribulado: por um postal enviado do Algarve, depois dele faltar à sua festa dos 50 anos.

Quando a relação com Tengarrinha acabou, Maria Armanda Falcão já era Vera Lagoa. E foi como Vera Lagoa que conheceu o terceiro e derradeiro marido, também jornalista e 15 anos mais jovem, José Rebordão Esteves Pinto.

Companheiro até ao fim da vida, José Rebordão seria o braço direito da última “encarnação” de Vera Lagoa. Juntos recuperaram o jornal ‘O Diabo’, um semanário de combate político, encostado por vezes às ideias da direita mais extrema. Rebordão Esteves Pinto foi, aliás, associado ao Exército da Libertação de Portugal (ELP), uma organização terrorista de extrema-direita.

Revoltada com o que chamava a “hipocrisia” dos que serviram o Estado Novo e, após a revolução, se apresentaram ao serviço como “grandes democratas”, escreveu uma série de crónicas que resultaram num livro, “Revolucionários que eu conheci” — e numa lista extensa de inimigos. De Mário Soares a Ramalho Eanes, de Otelo Saraiva de Carvalho a Francisco da Costa Gomes.

Depois do 25 de Abril, a Vera Lagoa que escrevia nos jornais deixou de ser “mundana” para passar a ser “reacionária”. Revoltada com o que chamava a “hipocrisia” dos que serviram o Estado Novo e, após a revolução, se apresentaram ao serviço como “grandes democratas”, escreveu uma série de crónicas que resultaram num livro, “Revolucionários que eu conheci” — e numa lista extensa de inimigos.

Zangada com os homens que livraram o país do Estado Novo para o mergulhar no Processo Revolucionário em Curso, Vera Lagoa — que no verão de 1974 até se filiou no PS — escrevia impiedosamente contra todos. De Mário Soares a Ramalho Eanes, de Otelo Saraiva de Carvalho a Francisco da Costa Gomes.

Muitos dos visados nas crónicas responderam-lhe com processos em tribunal. Ao todo, acumulou mais de 200 e juntou outra distinção ao currículo: foi a primeira jornalista em Portugal a ser processada por um Presidente da República. O crime de que Costa Gomes a acusou foi o mesmo de sempre: abuso de liberdade de imprensa.

Também houve quem preferisse responder-lhe com bombas, quatro, no total. E por muito que nunca tenha ficado ferida, não é como se não tivessem conseguido atingi-la, explicaria, na mesma entrevista à RTP: “Fiquei com uma doença de coração, permanente, por causa dessas bombas e ninguém foi responsabilizado por isso”.

Na altura, pegou na revolta por todos esses ataques, à bomba e em tribunal, e saiu à rua. Entre 1976 e 1978, a cada 1.º de Dezembro, dia da Restauração da Independência, Vera Lagoa encheu a Avenida da Liberdade com manifestações “pela pátria”. E até morrer, em 1996, com 78 anos, nunca mais deixou de ser vista como uma agitadora de direita.

A quem lhe perguntasse, dizia que nunca teve medo; nem das bombas, nem das prisões, nem dos julgamentos. A única coisa que temia na vida era ficar sozinha.

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