Já tinham surgido vários avisos. Nos últimos dias, vários dirigentes de topo do Hezbollah tinham sido assassinados pelas Forças de Defesa de Israel (IDF, sigla em inglês). Esta sexta-feira, com o recurso a um esquadrão de caças F15I munidos de bombas antibunkers, Telavive lançou um “ataque preciso” e matou Hassan Nasrallah, o principal rosto e secretário-geral do grupo xiita libanês há 32 anos.
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Durante as mais de três décadas que esteve à frente do Hezbollah, Nasrallah transformou um grupo de resistência contra a ocupação de Israel no sul do Líbano numa potência regional com um ramo político e um poderoso braço armado. No discurso na Assembleia-geral das Nações Unidas, esta semana, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, definiu a organização islâmica xiita como “terrorista por excelência” e cujos “tentáculos se expandem por todos os continentes”: “Matou mais norte-americanos e franceses do que qualquer grupo, exceto Bin Laden.”
Para isso, o secretário-geral contou com um precioso aliado: o Irão. E também se aproveitou de um Estado que muitos consideram como falhado: o Líbano. Com quase seis milhões de habitantes, coexistem no país xiitas, sunitas, alauitas, maronitas (uma Igreja Católica oriental em comunhão com a Santa Sé), ortodoxos e protestantes. Esta diversidade religiosa reflete-se no sistema político sectário, implementado desde que o país conquistou a independência de França em meados dos anos 40 do século passado, em que representantes de diferentes credos têm cargos específicos previstos pela Constituição. O Presidente tem de ser maronita, o chefe do governo sunita e o chefe do parlamento xiita.
Mas este sistema tornou-se também um terreno fértil para que surjam tensões entre os diferentes ramos religiosos e políticos. Exemplo disso foi uma sangrenta guerra civil que durou desde 1975 até 1990 entre várias fações e alianças. A meio deste conflito, Israel invadiu o sul do Líbano no final dos anos 70. E a situação, já de si precária, complicou-se ainda mais. Foi neste contexto de caos que surgiu o Hezbollah — o “partido de Deus”, em árabe —, fortemente apoiado pela Guarda Revolucionária Iraniana.
Na data da sua fundação, em 1982, o Hezbollah tinha dois objetivos. O primeiro consistia em expulsar as tropas israelitas do sul de Líbano; o segundo era a luta pelos direitos políticos dos xiitas no país. Mas foi-se expandido ao longo das décadas, tornando-se uma força a ter em consideração nas dinâmicas do Médio Oriente.
O manifesto de 1985 que tem como inimigos “Israel, França e Estados Unidos”
No manifesto do grupo político e militar, datado de 1985, o Hezbollah jura a sua lealdade ao “líder sábio e justo”: o aiatola. Além disso, os membros do “partido de Deus” definem perfeitamente os “seus maiores inimigos no Médio Oriente”: “Israel, França e os Estados Unidos”. Por isso, um dos seus objetivos consistia em “expulsar qualquer entidade colonialista das suas terras”. E há um capítulo do documento que prevê mesmo a “destruição de Israel”, uma vez que o Estado judaico “é agressivo e foi construído em terras expropriadas aos seus donos, à custa dos direitos do povo muçulmano”.
Ao longo dos anos, o Hezbollah passou por várias fases distintas. Enquanto as forças de Telavive permaneceram no sul do Líbano durante quase três décadas, o “partido de Deus” ganhou contornos de um movimento de resistência. Tudo mudou a partir de 2000, quando as Forças de Defesa de Israel abandonaram as “zonas de segurança” que mantinham no país vizinho.
A partir daí, o Hezbollah fortaleceu o controlo em certas regiões sul do Líbano, onde instalou bases militares, bunkers e túneis. Em 2006, o grupo xiita envolveu-se numa guerra contra Israel que durou 34 dias. Após o cessar-fogo, a tensão entre a organização islâmica e Telavive manteve-se; prova disso, foram os ocasionais disparos de rockets. Os dois lados estiveram sempre longe de enterrar definitivamente o machado de guerra e o “partido de Deus” foi reafirmando que não desistira da finalidade de levar avante o seu plano de “destruir Israel”.
Após o dia 7 de outubro do ano passado, a guerra entre o Hamas e Israel provocou uma reação imediata do Hezbollah, que tentou dificultar a resposta israelita ao Hamas ao disparar rockets para o norte do território israelita. Quase um ano depois desde o início do conflito na Faixa de Gaza, uma invasão terrestre israelita no sul do Líbano parece estar iminente. A confirmar-se, Telavive vai enfrentar o “partido de Deus”. — mas sem já sem contar com o seu poderoso líder, Hassan Nasrallah.
Os palestinianos e o manifesto: os antecedentes e a formação do Hezbollah
A guerra dos Seis Dias, em 1967, mudou por completo a configuração do Médio Oriente. Israel controlou várias partes daquela região e obrigou a que as atividades da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) tivessem de se centrar na Jordânia. Porém, o Rei jordano Hussein, em 1970, e após três anos de conivência, expulsou aquele movimento do país.
Após ter perdido influência em território jordano, a OLP mudou-se para o Líbano em 1971. Segundo explica o think tank Council on Foreign Relations, muitos refugiados da Palestina — de maioria sunita — que estavam na Jordânia mudaram-se para território libanês.
Como indica a Enciclopédia Britânica, os “muçulmanos libaneses” apoiavam a causa da OLP e procuravam diminuir o poder dos cristãos no Líbano. Estes, por sua vez, tentavam manter o domínio político em território libanês e queriam expulsar a Organização da Libertação da Palestina do país — o que deu origem a um conflito fratricida, que durou quinze anos.
Pelo meio, Israel também entrou no conflito. Invadiu o sul do Líbano para deter as operações subversivas da OLP no final dos anos 70 e para fortalecer o poder da elite cristã. Criou “zonas de segurança” e tentou derrotar a organização palestiniana. Mas este esforço criou anticorpos contra Telavive, quer de sunitas, quer de xiitas.
Quase em simultâneo, ocorreu revolução iraniana. Teerão cortou relações com o Ocidente e passou a encarar Israel como um dos principais inimigos. Aproveitando-se do caos decorrente da guerra civil no Líbano, o Irão decidiu ajudar os combatentes xiitas na guerra civil. Como escreve o Council on Foreign Relations, “vendo uma oportunidade para expandir a sua influência em estado árabes, a guarda revolucionária islâmica e o Irão providenciaram fundos e treinaram uma milícia, que adotou o nome ‘Partido de Deus'”.
Nascido nos subúrbios de Beirute em agosto de 1970, Hassan Nasrallah deixou-se influenciar pela revolução islâmica no Irão, tal como muitos outros jovens libaneses e xiitas da altura, como conta o Times of Israel. Ainda adolescente, associou-se ao Hezbollah e combateu pelo grupo contra o Estado judaico no sul do Líbano.
Nos primeiros anos, o Hezbollah era especialmente uma milícia bem treinada. A consolidação enquanto movimento político materializou-se com a publicação do manifesto em 1985. Para além da expulsão de todas as potências ocidentais do Líbano, a organização xiita ambicionava a criação de um estado de cariz islâmico, ainda que ressalvasse que outros libaneses não muçulmanos podiam viver no país. Entre todos, deveriam escolher a “forma de governação desejada”.
A participação em eleições até ser o Estado dentro de um Estado: a institucionalização do Hezbollah
Durante os anos 80, e enquanto se mantinha a guerra civil libanesa, o Hezbollah era conhecido pela sua brutalidade e extremismo. Num Líbano dividido e controlado por milícias, a organização xiita, com o apoio iraniano e a tolerância síria, tornou-se “sinónimo de ataques extremistas”, como escreve o think tank norte-americano Wilson Center. Nesta época, o “partido de Deus” atacou duas embaixadas dos Estados Unidos e levava a cabo sequestros violentos.
Ao longo dos anos, o Hezbollah foi-se instalando particularmente no sul do Líbano e dominava a resistência contra Israel naquela região. A influência que ia ganhando fez com que os sunitas desconfiassem das suas intenções — e, na reta final da guerra civil libanesa, grupos pertencentes aos dois ramos do islamismo entraram em conflito. A animosidade mantém-se até hoje.
A guerra civil do Líbano terminou em 1990 com a assinatura dos acordos de Taife. Várias fações, entre sunitas e cristãs, que estiveram em conflito durante quinze anos, entregaram as armas e prometeram respeitar um cessar-fogo. Com uma exceção: o Hezbollah. O grupo xiita pôde manter o seu arsenal, o que lhe conferiu uma posição privilegiada no país após o fim do conflito.
O Hezbollah foi-se institucionalizando, entrando no panorama político. Para isso contou a figura forte do primeiro líder do movimento xiita, o clérigo Abbas al-Musawi, que foi assassinado por Israel em 1992. O seu sucessor, como secretário-geral, foi Hassan Nasrallah.
Foi com Hassan Nasrallah que o Hezbollah participou pela primeira vez nas eleições gerais do Líbano em 1992, elegendo oito deputados para a Assembleia Nacional libanesa. Numa entrevista citada pelo Wilson Center, o secretário-geral assegurava que a participação eleitoral “não alterava o facto” de que o grupo era um “partido de resistência”. “Devemos tornar o Líbano num país de resistência e o Estado num Estado de resistência”, afirmava Nasrallah, que descartava, na altura, a implementação de uma “república islâmica”.
Desde essas eleições, o movimento xiita é presença assídua na Assembleia Nacional libanesa. Ao longo dos anos, tornou-se uma peça fundamental no jogo político, deixando cair governos ou mesmo ficando com pastas importantes em alguns executivos. As relações com organizações sunitas ou cristãs foram, contudo, sempre complicadas. Mas o grupo liderado durante 32 anos por Hassan Nasrallah soube, em algumas ocasiões, ser pragmático e deixar de lado as desavenças para alcançar objetivos políticos.
Para além da participação política, o Hezbollah exerce a sua influência em várias regiões no Líbano, nomeadamente no sul do país, em bairros do sul da capital Beirute e no Vale do Beca. Como escreve o Council on Foreign Relations, a organização xiita é única que governa diretamente aquelas regiões — e as decisões da Assembleia Nacional raramente chegam lá.
O Hezbollah, prossegue o think tank, “gere uma vasta rede de serviços sociais, que incluem infraestruturas, cuidados de saúde, escolas e programas juvenis”, angariando, por isso, alguns apoios quer entre xiitas e até entre sunitas. Numa reportagem da CNN internacional em 2006, Amal Saad-Ghorayeb, especialista na política do Líbano, explicava que o “partido de Deus” conseguiu “preencher o vazio deixado pelo Estado e pelas forças armadas” em várias partes do país.
A especialista dá um exemplo. Após a guerra contra Israel em 2006, vários jovens militantes do Hezbollah voluntariaram-se para ir para o sul do Líbano para reparar casas que tinham sido danificadas. “Eles carregam os camiões com janelas e todos os tipos de ferramentas. Eles vão casa a casa e perguntam ‘quer que arranjem as janelas ou as portas?'”
Politicamente, devido ao seu sistema sectário e à corrupção, o Líbano enfrentou várias crises políticas nos últimos anos. Devido às divergências de diferentes grupos religiosos e à dificuldade para chegarem a acordo, o país não consegue dar muitas vezes resposta aos problemas das populações. Vários analistas internacionais consideram mesmo o Líbano um “Estado falhado”.
Num relatório elaborado por Olivier De Schutter, enviado da Organização das Nações Unidas para no Líbano, leem-se duras críticas à liderança política libanesa. “Estão completamente fora da realidade, [tendo criado] desespero na vida das pessoas. O Líbano é também um dos países mais desiguais no mundo, apesar de a elite ou não conhecer essa realidade ou, no pior dos cenários, estar confortável com isso”, lê-se no documento publicado em 2022.
Neste contexto, o Hezbollah substituiu a função do Estado e tornou-se, assim, um Estado dentro do Estado, concedendo serviços básicos à população. Ainda assim, a organização xiita não convence a maioria da população — e muitos libaneses reconhecem que não é uma boa alternativa para governar o país. Um barómetro realizado em agosto de 2024 mostra que “relativamente poucos libaneses apoiam o Hezbollah, embora possua influência significativa em todo o país”.
A “destruição de Israel” como objetivo máximo e as alianças
O Hezbollah nunca escondeu que é um grupo extremista que quer destruição de Israel. Para o alcançar, a organização xiita não tem pudor em usar métodos brutais e envolver-se em crimes económicos para sustentar o seu funcionamento.
Por tudo isto, mais de 60 países designaram o Hezbollah (mais que não seja o seu braço armado) como um grupo terrorista. Em termos geopolíticos, é ainda dependente do Irão e é o principal ator no eixo de resistência em que também estão incluídos os Houthis do Iémen, o Hamas ou grupos xiitas no Iraque ou na Síria. E também encontrou um aliado no regime sírio de Bashar al-Assad.
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Em 2000, a saída de tropas israelitas do sul do Líbano foi encarada como uma vitória para o Hezbollah, que cumpriu a função para que parcialmente tinha sido criado. Seis anos depois, envolveu-se novamente num conflito contra Israel durante 34 dias, após a morte de oito soldados. Deste conflito, as duas partes reclamaram vitória. Mas a tensão entre a organização xiita e Telavive nunca diminuiu verdadeiramente.
Fundado numa altura conturbada durante uma guerra civil, o Hezbollah foi ganhando poder e espaço no Líbano, um país marcado por fortes divisões religiosas e pela governação ineficiente. Num futuro próximo, a organização xiita pode vir a enfrentar o seu eterno inimigo. Ainda na passada quinta-feira, Herzi Halevi, chefe das Forças de Defesa israelitas, reconheceu que é “preciso continuar a atacar o Hezbollah” e “há anos” que Telavive “espera por uma oportunidade como esta” — de infligir duros golpes ao grupo pró-Irão.
Um desses “duros golpes” teve lugar esta sexta-feira com a morte do líder do Hezbollah. Como realça Lina Khatib ao Times of Israel, membro do think tank Chatham House, a morte de Hassan Nasrallah vai diminuir a “moral” do grupo e revela a “superioridade militar” das Forças de Defesa israelitas. Mas a organização xiita com 44 anos de existência vai saber adaptar-se e tem recursos suficientes para “não colapsar”.